quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A charada de Medéia

Homenagem  ao  poema "Nas cinzas de Gramsci" , de Pasolini

A voz é alta
O enigma é gordo
Todo o grito é grosso
Um passado morto 
[Os mortos nunca param de dizer suas alegorias]

Andam os desmemoriados sem reconhecer as vozes das lápides
A voz é aguda. A charada é crítica.
Enigma turvo
Os lobos uivam, fantasmas andam entre os vivos
Dizendo palavras de silêncio
A charada amarga cai no esquecimento
Parda.
Ardendo a alma dos filhos de Medéia.
Culpados, sem saberem os motivos.

Não conhecem o corpo materno
[que um dia sugaram o seu leite de sangue]
Não conhecem a sua Barbárie
Que as múmias oligarcas permitiram que a história apagasse.
Apagasse a identidade dos abortados vivos.  
Os filhos de Medéia  não têm imaginação
Não têm identidade
Vivem na sua mediocridade
Sem passado. Sem linguagem.
[ Suas palavras foram roubadas pelos militares que um dia maquiaram a Barbárie.
A Medéia que não tem corpo, arde na alma de seus filhos que não têm palavras]
A charada não tem palavras
Sonoras soltas
Medéia é a imaginação
Roubada 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Isso não é autoajuda


Aos meus amigos inesquecíveis e que não reconheço mais,
quando encontro na rua

façam uma lista de grandes amigos, quem você mais via há dez anos atrás?
(A lista, Oswaldo Montenegro)

, tem muita coisa que a gente tem vontade de dizer pra muitas pessoas. Às vezes, a gente passa a vida inteira sem dizer aquilo que tinha vontade e nunca disse. “Nunca” devia ser verbo. Essa palavra devia ser proibida, porque o tempo do nunca é impossível de imaginar com nosso pensamento, tão limitado e restrito ao planeta Terra. Mas, muitas vezes, as palavras são insuficientes, tem gente que sabe que o nunca é verbo, mas não gosta de falar. Tem gente que nunca vai ter arroz e feijão todo dia na mesa, vai morrer sem RG e sem CPF. Essa gente sabe que o nunca é verbo permanente, bate na porta e não pronuncia a sua sonoridade.
 (mas sempre pensei que a sinceridade era uma qualidade primorosa. Até aprender que os mentirosos vivem mais coisas, vivem inclusive os saltos e os voos da imaginação, vivem o dobro de todo mundo).
 tem muita coisa que eu queria dizer. Mas devo ter muito recalque, nunca digo no momento que eu deveria dizer. É engraçado! Mesmo depois de muito tempo, mesmo não amando mais o mesmo homem, se eu o reencontro com outras moças, fico pasma e sem fala. Ele nem me cumprimenta mais, desce pela rua Voluntários da Pátria, despreocupadamente, com suas obrigações cotidianas zombando sua cabeça.
Alguns dizem que a gente mesmo nunca percebe como o tempo muda; a percepção do tempo está nos outros. É através dos outros que percebemos as pentelhices do tempo. Tem amigos que costumavam comer na minha casa, hoje não tenho mais assunto, não sei nem por onde começar, perdi o costume de conversar com aquele outro, que já fora íntimo em momentos passados. Outros que me ligavam a cobrar, hoje eu não sei nem dizer oi quando passam na rua.  Não sei se me acostumo com essa mudança do outro ou se essa mudança é minha? Não sei se o tempo mudou o meu amigo ou se eu mudei e, absolutamente medíocre, não percebi as mudanças? Não sou filósofa para fazer a pergunta: como o efeito do tempo atinge mais o outro do que você próprio? Por que será que a gente sempre tem essa impressão? Deve ser vaidade, não queremos que o tempo nos ataque, mas é nos outros que a gente vê.  O tempo ataca, quando se está distraído.
Tem muita coisa que eu gostaria de dizer. Mas eu não tenho assunto. Não sei falar português, quando percebo narcisicamente que os ataques do tempo foram maiores para um antigo amigo do que foi para mim. Assumo logo uma posição, nego a existência do tempo. Me engano, minto tanto pra mim, não tenho coragem de aceitar que o tempo também me ataca todo dia. E se um dia, distraidamente, algum amigo antigo conversar comigo, eu não saberia mentir uma intimidade que não possuo mais, conversaria com ele como uma pessoa desconhecida. Era como se, assim, conhecesse outra pessoa que precisaria de mais tempo para me acostumar. Envelhecer também é um processo de aprender consigo mesmo quem é; é o momento de conhecer em si mesmo a pessoa que não conhecia. É provável que eu nem ame mais os meus velhos amigos, mas a pessoa que eu era neles. Eu sinto saudades da minha mentira do passado, não gosto de imaginar que o presente é um enorme conflito do hoje e do ontem. Os tempos vão esparsos, peneirados como água, derramam na mão e  ficam submersos nos poros. Me esqueci que tudo isso é uma questão narcísica. Velhos amigos, eu rezo pra não encontrar vocês na rua, não gosto de ver em vocês o efeito do tempo que também acontece comigo.
Só que tem tanta que eu queria dizer. Queria perguntar: como estão? Mesmo sabendo que seria impossível continuar a conversa. O assunto morreria no momento que nascesse. Mas até tentaria dizer: eu já me reconheci em você, por isso te amei, eu já aprendi com você, por isso que mudei. Eu já liguei pra você às duas da madrugada, já rimos muito e você já me deu ótimos abraços quando precisava. Por isso, não me acostumei ficar sem você. Mas como é importante! Tem escritores que dizem: é melhor já agora, você, leitor, aprender a abandonar os seus amigos desde criança, porque os melhores amigos são aqueles que você precisa abandonar e desapegar, o homem precisa ter coragem de conhecer a vida sozinho e criar novas experiências. A primeira lição do homem é abandonar seus amigos. (acho que é o Henry Miller que disse isso no livro Trópico de Capricórnio, claro, não exatamente com essas palavras) Isso não é autoajuda, isso é vingança contra o tempo. Posso não dizer tudo na hora, mas sempre marco depois. A memória é o pior defeito do escritor, mas nem sempre os defeitos são tão ruins.
Não se esqueçam nunca dessas mentiras: 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Terminações


Quatro anos depois, a B. revê o Odisseu descendo a escada do metrô. Ambos pararam, começaram a conversa curta. (De longe, qualquer um mais atento, recordaria de uma música do Paulinho da Viola).

Odisseu - Tenho uma pergunta

B.– Qual?

Odisseu - Você é você ?

B. - Depois de você eu nunca mais fui eu, me tornei outra. Então, você ainda enxerga o mundo como antes? Ainda sonha os mesmos sonhos? Ainda quer mudar o mundo?
Odisseu- eu voltei da Argélia esses dias, os meus sonhos virou ruínas, o mundo parece tão diferente agora. Você tá diferente!

B. – onde está Francine?

Odisseu – casou com um Francês

B. – eu casei com um alemão, descasei, casei de novo com um baiano, depois que foi embora. Mas agora... eu estou sozinha

Odisseu olha os olhos grandes, imensos, decaídos no rosto. Esquecendo a lembrança dos antigos olhos daquela mulher que, um dia, já fora sua amada. As mãos ainda pequenininhas, menores que o corpo, mexendo e tremendo muito, ela sempre faz isso quando sente o nervosismo atravessando a nuca. O corpo dela é frágil, qualquer toque parecia que a estrangularia, lembrava um pássaro com frio e sem penas, todo encolhido aos braços dele quando estavam na cama. Era essa lembrança que sentia quando se aproximava dessa mulher. B. sentiu tristeza. Sabia que o presente recordaria o passado, mas o desejo ia continuar no âmbito das ideias. O corpo pedia ele, mas já o esquecia completamente.

B. – eu tô atrasada, preciso correr

Odisseu – o metrô tá chegando

B. – a gente se ver

Odisseu – a gente se ver 

domingo, 11 de novembro de 2012

O Cenário Político Brasileiro


(isso não é uma tese, é um depoimento) 


O que mais incomoda hoje em dia é que eu não tenho ideia (e talvez medo) de apoiar assumidamente qualquer partido político. Falar abertamente do que representa PT, PSDB e etc, hoje em dia, é um debate infinito, acobertado por uma série de hipocrisias, preconceitos estúpidos e ódios mortais. Não conhecendo o processo histórico com absoluta firmeza. Vivenciando um momento de booms (booms de ideias políticas, de preconceitos escancarados e de criações estéticas esparsas), ficar perdida com tantos acontecimentos, apercebendo-se uma fagulha de pó ao meio de tantas pedras sólidas e maduras, tem momentos que, simplesmente, não sei o que fazer. Não sei o que falar, só tenho perguntas. 

Meu primo me deu o primeiro contato com política. Acho que estive em uma passeata [eu acho] embaixo no MASP, defendendo imagino o PCdoB. Thiago ainda conheceu com mais intensidade o governo FHC, eu conheci o Brasil-Lula e, nesse momento, o Brasil pós-Lula. Sempre, ao PT, ouvi críticas negativas dentro de casa. Muitas vezes, influenciada por minha família pensei em defender partidos da oposição. Eu sempre gostei de ler, me interessava por textos de ficção desde criança, então, quando entrei na faculdade a minha intenção sempre foi, - talvez para preencher o espaço vazio desse passado brasileiro que ninguém fala, - falar do Brasil, escrever sobre esse país, ler os escritores daqui, conhecer as pessoas daqui.

O que eu quero, talvez, é falar o que significa viver essa confusão de perspectivas, existindo no meio disso, tentando criar uma espécie de dignidade e lucidez diante desse mundo de tagarelas que não estão interessados em expor os pontos de vistas esquecidos. Julgam os inimigos sem ao menos estabelecer as contradições. A impressão que eu tenho é que eu vivo no mundo de tagarelas. Isso é um fato. Ninguém fala de passado nenhum, o nosso passado é muito farto, mas o presente é muito desejado, no entanto, me parece um tanto impalpável, invisível, muito indeciso. É um mundo de melodramas e tagarelices.

Se eu vivesse na metade do século XX, apoiaria sem pestanejar PCdoB ou PCB (reformistas x revolucionários; partidão x porra loucas) . Ou mesmo, viveria como a Leila Diniz, amiga dos poetas, amante dos homens, amada por cineastas. Porra louca total! Uma dessas vadias imortais no mundo e que escancarou as contradições da esquerda. Tais contradições que ainda estão presentes no dia de hoje, talvez mais abertamente, afinal vivemos num país democrático, hoje os atores podem assumir os seus papéis e expor as suas plataformas políticas no meio do teatro político. Nesse jogo, esse gênero cotidiano, mais vivenciado pelos civis da sociedade, chamado política, é levado, até as últimas consequências, a várias experimentações estilísticas e estruturais. Os jornais brasileiros tendem a transformar esse jogo em melodrama.  Já a extrema esquerda gosta de se fazer de santa, transformando esse jogo em melodrama negativo, nem PT é confiável, nem PSDB é, tudo é faria do mesmo saco. (Walter Benjamin chamaria esse fenômeno social de estetização da política; aliás, ele diria que isso é um péssimo sinal, que deveria acontecer o oposto, a politização da arte). Muitas esquerdas insistem em falar que vivenciamos uma ditadura militar, não sei se por romantismo ou por insistência em se tornar heroica.  O que é terrível, um país que precisa de heróis, é uma nação pobre e fragilizada.

De qualquer modo, a zona de guerra mais conhecida no cenário político está entre PT e PSDB. Ambos partidos políticos fortes, cheio de picuinhas, cheio de problemáticas e contradições, mas não são legendas, são partidos. 80% da população apoia o governo Dilma, o que é realmente muito estranho? O que isso significa? Significa alienação geral? O mundo é dominado por burgueses? O que é isso? Ou contrário, significa terrorismo, o mundo é dominado por petistas ignorantes e analfabetos. Muito engraçado isso. No governo FHC, além da dívida externa, também era um país de analfabetos e ignorantes. A pergunta que não quer calar: por que esse ódio mortal com PT? Não é com PT, o que mais me irrita, não é isso, o que é desastroso nessas análises tendenciosas. É que o ódio tenta atacar os dirigentes, mas acaba atacando toda a base petista, que é absolutamente comprovável, quem defende PT, não é burguês, é gente de favela, é pobre, é operário. Lula ser considerado um símbolo de um presidente pobre e operário é sinal de identificação, muito mais do que se imagina. Não é um símbolo qualquer, não é signo para se jogar no lixo. Atacar o PT desse jeito é um absurdo. Chamar petistas de burros e ignorantes é sinal de estupidez e intolerância de classe.

Concordo. O PT não é isento de críticas, mas também ele não é o vilão da novela mexicana que tentam criar. Diante dessa mídia, sabiamente por todos hegemônica e [invisivelmente] tendenciosa, a crítica ao PT não pode partir dos mesmos argumentos que são usados pela Direita. Não é assim que a contradição será exposta, a exibição disso deve ser posta por outros meios. Senão, eu sou capaz de acreditar que a extrema esquerda é na realidade um braço da grande Direita.

Antes de qualquer coisa, é preciso recordar o passado. Esse mistério político que é negado para essa geração, ninguém fala, ninguém comenta, ninguém sabe. A Ditadura Militar Brasileira deve ser posta no jogo, as cartas dos presos políticos no passado precisam estar na mesa. Imitarei Adorno, em Educação pós Auschwitz[1], o passado é muito farto. As condições estão dadas, as repetições da história podem estar acontecendo ou podem acontecer, mas as coisas precisam ser faladas. A juventude não pode mais viver nesse mundo de joguetes políticos, tagarelas intolerantes, pois fica difícil assim. A gente realmente não faz ideia de quem está no cenário político, jogamos o jogo com a pura intuição, correndo o risco do passado se tornar presente outra vez, mas usando outras máscaras.

De qualquer modo, terminarei o meu depoimento expondo o seguinte. Certa vez, estava conversando com uma amiga, ela falou uma frase que guardei na memória: “ eu sou revolucionária, voto nesses reformistas do PT por causa disso, para as pessoas que se fodem mais, não se foderem ainda mais. Posso não entender as Esquerdas, mas não tenho dúvidas que odeio a Direita”. Reitero o que ela falou, posso não entender de história, de política e não compreender as Esquerdas, mas não tenho dúvidas nenhuma que o inimigo é o mesmo. O inimigo é comum.  



[1] http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=179:educacao-apos-auschwitz&catid=11:sociologia&Itemid=22

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Rock n’ Roll e o fim do mundo


- Quero um pouco de a black tea and blues, please! Eu gosto e odeio São Paulo,
o frio rasgante
junto com desequilíbrio
 do calor cortante
são,no mínimo,
 intrigante. 
Meu, eu sei que isso era pra ser uma conversa, não uma poesia.
Do que vamos papear? 
- A revolução
- artística?! Magina...  A gente conseguiu algo em 1968, uma naturalidade em naturalizar o ato de romper. Pena que só deu pra fazer isso no âmbito estético, tem gente que não tem a mínima ideia do Glauber Rocha e dos poetas populares. Estou fazendo crítica. Não era pra gente falar besteira
- como anda os seus casinhos?
- tô noiva, vou casar nos Caribes no dia 22 de Outubro de 2040. É meio longe, porque a gente quer assistir o mundo acabando
- quando que acaba?
- ah! Falaram que ia acontecer em 2040, a gente quer ver. Tanto que o casamento vai ser numa ponte. Numa ponte amarela, a música de entrada vai ser uma música bonitinha, aquelas bem calmas, sabe.  A gente pensou em Valsinha, de Chico, até Clair de Lune, de Debussy. Aí vai ser bem trash, magina todo mundo pegando fogo e uma canção bonitinha no fundo
- quantos anos vai ter?
- eu (2040 – 1992 = 48), eu vou ter 48 anos e serei uma anônima. Talvez mais feliz, talvez mais triste.  Muitos amigos já terão morrido, quem sabe eu terei filhos até lá ou continuo sendo amante do Armando. Betinha, quando voltar de Alagoa, não se esqueça de passar um tempo na minha casa, eu não cozinho bem, fazer o quê, mas posso fazer café 

O monstro de olhos vermelhos


 1
   
Escadas largas, grandes. O céu noturno gritando socorro por sua falta de estrelas. Um homem sozinho no meio do caminho bebe uma latinha de cerveja. Os olhos vermelhos vigiam o lugar, o cachorro late para um ratinho que na fuga tropeça numa lata de cerveja.  Cão come o ratinho fugitivo, o sangue se mistura com os olhos vermelhos. Olhos que fixam na figura do homem.


Dois minutos atrás, o bêbado jogou a lata de cerveja, não notou a vida que acontecia ao seu redor. Cantarolava uma canção inventada. Ele, chamado pelos amigos de Wilson, olhava para os dois bolsos da calça. Uma calça verde, o bolso direito furado, o esquerdo guardando uma pilha de papéis inúteis.  Um desses papéis era uma carta de sua ex-esposa:


“ Fui embora. Arrumei a minha mala, vou morar em Espírito Santo, levei embora comigo a Cris. Pelo bem dela e nosso, não nos procure, estamos bem.
Assinado,
Ann “


Wilson casara com Ann em 1989. Ele tinha uns vinte e dois. Ambos tinham se conhecido no Rio, era um show de rock de uma banda norte-americana. Foi um acaso que se apaixonaram, outro acaso que se traíram, mais um infeliz acaso que se separaram. Os olhos vermelhos do cachorro lamentavam  a falta de água fresca, o animal uivava para lua. O homem chorava sozinho na noite escura. Rasgava a carta da Ann,  ele pensava, a caligrafia de Ann sempre foi caprichosa, ela sempre foi uma mulher bonita, mesmo agora já envelhecendo, continuava bonita.

2

Uma tropa de policiais fazia ronda próximo de uma favela. Tinham trocado tiros com uma malta de bandidos, entraram em um beco. Escutaram um estrondo, ouviram um som qualquer. Confundiram com bala de revólver. Atiraram pra matar.

Polícia 1: Existe uma ordem dos homem lá de cima, a gente respeita
Cachorro: au au
Polícia 5: os meleque estão escondido
Cachorro: au au au aua au

A polícia 6 atira no cachorro para matar, o cão foge de medo. Os olhos vermelhos brilham debaixo de um monte de lixo.  Os policiais não encontram nada no lugar. Há uma trilha de sangue que inicia nas escadas e termina na lata de cerveja, misturada com o ratinho que morreu pelo monstro dos olhos vermelhos. Um inocente desarmado morre sem o término da história, outro caso interrompido. 

3

O monstro dos olhos vermelhos sai do esconderijo. Naquele lugar ermo, existem dois corpos.  O cachorro faz o trabalho do perito, fareja os dois corpos, o animal encontra os resíduos da carta de Wilson, uma memória da tristeza, daquele cidadão anônimo, é vigiada pelos olhos vermelhos como se fosse alimento.  

A vida do cidadão anônimo, para os olhos vermelhos, pode significar nada. Na guerra escondida, entre ratos e cachorros, Wilson foi uma vítima invisível. É provável que nem a família dele saiba do acontecido. Tudo bem. O cão terá mais carne para comer a noite. Wilson morreu de sorte e de tristeza, todos os lugares são ótimos para suicídios involuntários e desistências cabais. A morte de um cidadão anônimo interfere nos homens de bem igual ao um rato, é mais fácil sofrer por um bichinho morto do que brigar com monstros de olhos vermelhos. 

domingo, 4 de novembro de 2012

Sobre Avenida Brasil


1

Por causa da febre dessa novela, pensei e repensei muito se eu escreveria um texto, falando sobre ela. Na internet, vi resenhas criticando-a, como opiniões também elogiando. Uma crítica que me chamou a atenção (que gostei bastante), explicava onde se encontrava os aspectos machistas da novela, vou deixar nas referências abaixo[1]. Entretanto, acho que não vou fazer exatamente uma crítica, queria pensar essa novela. Por que houve tanta identificação popular? A novela conseguiu tanta audiência igual aos tempos de outra também conhecida Vale Tudo, como isso aconteceu? Me pergunto: será que houve uma mudança de estrutura dramatúrgica nas novelas para chamar atenção do público?
É até meio óbvio! Expor que as novelas possuem argumentos parecidos. Todas maniqueísta, o bem contra o mal, o mocinho sempre de olhos azuis, rico, arranjado uma experiência amorosa indo em direção ao sucesso. Mas, antes, é preciso lutar contra todos os obstáculos, o principal, na maioria dos casos, é o dinheiro. Mantendo o status quo intacto. Essa estrutura é mais antiga que a televisão, conhecida na literatura como estrutura de folhetim. José de Alencar poderia ser considerado o vovô das teledramaturgias. Aristóteles é o tataravô dessa estrutura. Ao contrário da teledramaturgia, José de Alencar e Aristóteles são cânones, dignos de serem estudados na academia; o inverso significa alienação, ignorância e etc. Enfim, não dá para negar que as pessoas se identificaram com essa novela, por isso, no meu entender, não posso fechar os olhos pra isso.
 Em Vale Tudo, surgiu o mistério mais famoso da televisão brasileira. Até quem não viu, conhece. A pergunta “Quem matou” nunca fez tanto sucesso do que nos tempos entre 1988 e 1989. Afinal, “quem matou Odete Roitman?”, uma personagem absolutamente preconceituosa, mesquinha e morta no final das contas por alguém que pouco se podia esperar.  É engraçado como essa tática está presente até os dias de hoje, quando há o famoso assassinato do final de novela, todos pensam quase de maneira previsível: “é alguém que não tem nada ver, sempre é assim, alguém que a gente não imagina”. Dito feito, na novela Avenida Brasil, seguindo a famosa estrutura de assassinato de final de novela, terminou com alguém que tinha tudo haver. E todos no meio da rua: “ não , não, vai ser alguém que nada tem haver com a história”. Essa é a maior prova de como “Vale Tudo” entrou no imaginário das pessoas, inclusive em termos de estruturação.


2

A atriz Beatriz de Toledo Segall que interpretou a famosa vilã Odete Roitman. Em uma entrevista, disse que essa novela foi tão importante para o Brasil, auxiliando inclusive no impeachment do Fernando Collor[2]. Enfim, não vou esquecer jamais a maravilhosa interpretação de Renata Sorrah, que fazia a filha de Odete Roitman, a Helena Roitman. Quem não viu, vale a pena ver mesmo! Procure no youtube.  Aliás, sou uma certa fã incontestável dela, desde Nazaré, de “Senhora do Destino”, que era ela a novela toda, afinal o toque de humor estava na vilã.  
O que vamos falar, agora, exatamente sobre isso. Adriana Esteves fez a Nazaré jovem, Renata Sorrah a segunda fase. Esse toque de humor, de certa forma, acompanha as vilãs nas novelas brasileiras, não sei precisar quando foi o início, mas em Odete Roitman acontece isso também. Então, de certa maneira, a Carminha demonstrar alguns momentos de humor não foi exatamente uma grande mudança. A Nazaré era mil vezes mais engraçada.
No entanto, entre Nazaré e Carminha, na segunda personagem existe uma mudança de tratamento aos vilões.  O que tem mudado nas estruturações das novelas e me chamado a atenção foi isso. Não foi só com a Avenida Brasil, em Passione e A Favorita também aconteceram essa mudança. A mudança é enfraquecer um dos elementos primordiais de estruturas folhetinescas: o maniqueísmo feroz.   
As novelas são conhecidas com um argumento clássico. Uma dicotomia absolutamente clara: a personagem má versus a personagem boazinha. Dependendo do enredo, essas variações de caráter podem mudar, não necessariamente depende da classe social, não é sempre a boa, pobre, e a má, rica. Isso depende do que a novela discute, isto é, o tema. E, principalmente, o ponto de vista.  Por isso, a classe social varia, mas não vou negar que, em todos os casos, a novela transmite um ponto de vista conservador. É preciso lembrar quem é que produz essa cultura, qual é o modo de produção.


3

Em Passione, relembremos a vilã Clara. Mulher sensual, um rosto de anjo que seduziu um italiano e enganou toda família dele. Entretanto, ela tinha a sua irmã, que protegia e amava, sendo capaz de fazer até coisas boas. Era a irmã dela que trazia algumas características mais humanas para Clara (atriz Mariana Ximenes). Teve um momento que o público até acreditou na mudança de Clara, mas no final isso foi invertido. A vilã mostrava qual era o seu verdadeiro lado, ela era uma vigarista, só amava e respeitava a irmã. Isso balançou um pouco a estrutura da novela, o maniqueísmo foi posto em dúvida ou, pelo menos, em cheque. Os vilões, no final, eram inimigos, Clara e Fred (ator Reynaldo Gianecchini) desconfiavam um do outro, destruíam os planos um do outro.
Em A Favorita, é importante lembrar que o mesmo autor dessa novela escreveu também Avenida Brasil, a estrutura do famoso assassinato de final de novela foi prolongada, a dúvida foi logo posta no começo. O público defendeu a vilã (Flora), depois a mocinha (Donatela). Patrícia Pilar e Claudia Raia interpretaram essa disputa que enfraquecera muito o maniqueísmo feroz.


4


 Avenida Brasil imitou o mesmo mecanismo que A Favorita, os vilões tornaram heróis, esses se mostraram ainda mais perversos e frios do que os vilões. Nina/Rita e Carminha vivenciaram as mesmas coisas, também vieram do lixo, escondem de toda a família Tufão muitas coisas do passado. Toda a ação dramática acontece por causa do passado, o presente obriga desenterrar as coisas que estão no passado para Nina e, ao final da novela, para Carminha no intuito de desvendar toda a verdade. No final, Carminha muda completamente a sua postura com relação a sua conduta na vida, enfrentando e matando o seu pai. Daria um bom Édipo Rei, afinal a personagem trágica dessa história não foi a Nina, ela teve a chance de vivenciar um final feliz, mas a heroína edipiana foi a Carminha.
Carminha matou o pai, matou o homem que amava, foi exilada de sua casa e terminou onde começou a sua infância no lixão. Antes, propiciou uma vida mentiras e de hipocrisias sociais vivendo na família Tufão.  A mãe Tufão, entre todos da família, era a que mais defendia a esposa do Tufão, católica, bem comportada e dissimulada; desse ângulo, a ex-faxineira era a mais hipócrita, pois propagava e determinava mais as vivências de convenções sociais hipócritas, ao mesmo tempo, que também mentia e enganava em nome do prazer sexual.
O argumento entre protagonista e antagonista propiciava uma relação entre Rita e Carminha de amor e ódio. O público no início da novela teve tanto ódio da Carminha de bater em criança e etc, que desejava a morte da vilã. No final da novela, esse ódio foi transferido para Nina, pois ela nunca tinha coragem de denunciar a inimiga, enrolava e se perdia no meio do caminho. Entre todas as personagens, era Nina/Rita quem conhecia mais a Carminha, mas tinha uma mistura de medo e respeito, no final da novela isso ficou mais claro com a cena do lixão e o almoço entre elas. Ambas tinham ódio e respeito.


Conclusão

Esse enfraquecimento do maniqueísmo pode significar uma mudança de estruturação das novelas brasileira. Uma nova maneira de ideologias políticas conservadoras entrarem na vida do cotidiano, isso se continuar mexendo com elas, trazendo elementos narrativos que são da modernidade literária. De brincar com o jogo entre protagonistas e antagonistas. Isso pode ser, por um lado, interessante de notar, afinal talvez o público estivesse cansado do argumento manjado e clássico. Ao mesmo tempo, esse elemento sedutor pode significar novas formas de explicar o status quo e mantê-lo assim sem luta e sem crítica. O que pode ser muito preocupante. Como diz um livro de Ventura (1968 o ano que não terminou), mas em outro contexto: a direita tá sendo mais dialética que a esquerda!.