sábado, 27 de novembro de 2010

A história das peles

Andréa sai do banheiro e se encontra com o espelho.
Nesse encontro, ela faz uma viagem e uma retrospectiva da
vida que teve com seu marido, a infância de ladra de mexericas
e os dois partos que teve no ventre.



Ela saiu do chuveiro e trombou-se face-a-face com uma imagem muito parecida dela. Após o banho, as mãos e os olhos examinaram os detalhes que eram idênticos: a maçã protegida por seu rosto meigo, as bochechas abertas em um falso sorriso, os cílios tão maiores que os seus olhos e concerteza mais delicados que a própria retina, as belas e negras sobrancelhas desenhadas propositalmente acima dos olhos castanhos como uma dama lunar. Essa imagem era tão estranhamente mimética; porém, havia nela uma estranha assimetria do que Andréia pensava que era o corpo físico dela e do que realmente ele era.

Andréa nunca havia ficado observando, em frente do espelho, os seus detalhes em um período tão duradouro. Assustada e maravilhada, ela suscitava nas formas que a pele desenhava algumas lembranças, iniciando pela cicatriz que marcava as cochas. Houve uma lembrança carnal enquanto tocava a cicatriz, Andréa sentiu: “Ah, eu corria que nem uma gazela alegre e magricela; o vento disputava comigo a corrida, às vezes eu era rápida, às vezes era ele. Mas, - como hoje isso me assusta - eu não tinha medo de nenhum muro titânico, pulava e enfrentava árvores, dragões e broncas da minha vó com tanta naturalidade cruel que sempre existiu em mim. Quando a vovó se aproximava de mim para brigar, eu sorria toda melada de suco de mexerica e ainda oferecia para ela, como se dissesse: você quer?”. Andréa sorria de alegria, quase chorando, gostava das saudades que tinha do seu corpo moço. Aquela cicatriz era um símbolo dos roubos das mexericas e os cuidados que a vovó tinha com ela; uma vez ela pulou o muro e se machucou, a vovó ia brigar com Andréa pela falta de responsabilidade, mas vendo-a, não teve forças de ficar brava e cuidou da cicatriz das cochas. A vovó limpou a cicatriz e sarou-a com os remédios caseiros enquanto, ao mesmo tempo, contava histórias românticas dos namorados lunares que cantavam serenatas e declarações de amor.

Ela apertava essa cicatriz que já nem doía mais, ainda sentindo a dor de meninice quando tinha se machucado. O sangue luminoso, vívido e vermelho que saltava os olhos dela e fazia sentir medo e dor. Certa vez, Andréa sentiu vergonha dessa cicatriz de ladra de mexericas, principalmente, quando trocava-se de roupa em frente das meninas que faziam natação com ela; pois, ela tinha que sempre explicar o motivo da cicatriz nas cochas e compará-la com uma cocha lisa. Todavia, não havia motivos de vergonha, hoje, com cabelos brancos, enfrentando esse mesmo espelho de anos, já não se importava que um dia essa cicatriz era motivo de vergonha na infância e puberdade. Ria dela, sem ódio e angústia, mas com uma alegria de saudades.

Os dedos, que alisando a cicatriz, subia levemente até o umbigo, - o ponto central que dividia o norte e o sul delimitando o ventre tal lugar que lhe proporcionou diversos prazeres. Ela imaginou novamente seu marido já falecido quando ele encostava seus dedos no umbigo e cobria-lhe de tantas intensidades de beijos. Mais tarde, era o ventre que protegeria a filha e negaria um filho, lá seria o palco para um parto e um aborto. Foram duas dores bastante parecidas, no entanto, a primeira dor foi uma vida e a segunda dor foi só sangue. Em ambas, o sangue escorreu com pressa, mas, no aborto, esse sangue fugia do ventre e criava uma cicatriz lá dentro. A dor ainda existe. Quando ela aperta no ventre sente a sensação do filho que é só sangue. Não é igual a dor da cicatriz de ladra de mexericas tal machucado tão amostrado para o mundo, a dor do aborto criou uma cicatriz no ventre que ninguém vê nem Andréa. A dor do aborto é abstrata.

Levando as mãos até o peito relembrou-se, então, do seu falecido marido. Ele retornava do trabalho quando dois rapazes abordaram na saída do metrô e pediram dinheiro, carteira e celular, como ele estava sozinho, deu tudo aos rapazes. Próximo à entrada do metrô, havia dois policiais que, vendo a confusão, correram para pegar os vagabundos e vadios. O primeiro rapaz foi atingindo por treze balas pelo policial da esquerda: uma acertou o ar, duas, três, quatro, quinta foi o braço, sexta peito, sétima cabeça, oitava, nona, décima era o sangue do rapaz, décima primeira era vontade de matar, décima segunda era ódio e vaidade, décima terceira era nada. O segundo rapaz que não correu fez do marido de Andréa seu refém, o marido estava assustado e tinha problemas cardíacos, morreu nos braços do rapaz jovem, não foi nem por causa de tiros, mas sofrendo um enfarte. O policial não socorreu-o, prendeu, primeiramente, esse vadio e ladrão mais jovem.

Andréa assistia a novela das sete quando telefonaram-na. Ela desmaiou no sofá; Lúcia, a filha de Andréa, socorreu-a com grande tranquilidade, oferecendo um comprimido e um copo d’água com açúcar. Andréa não acreditava na notícia que recebera, o marido dela estava morto; quando ela foi até o hospital, ele estava pálido e com o peito aberto (aquele peito aberto que havia deitado dias atrás, Andréa quis morrer ao lado dele). Tiveram que retirar Andréa no quarto, estava-a descontrolada. O último momento dela com seu homem fora um abraço que deu-lhe peito-a-peito, era como uma ação de nostalgia que tiveram na juventude e na velhice que viveram. O peito que ela dormiu deitada, colando a orelha nos pêlos, o peito que a protegeu da cicatriz do ventre e de tantas outras que a vida lhes concebera, aquele peito. Ele foi embora e deixara apenas esse peito.

- Já não me olho com pressa como antes eu olhava na minha meninice que nem olhava, apenas passava diante do espelho e saia pulando para brincar. Já perdi os motivos de me enxergar no espelho com ódio e angústia, com raiva de não saber quem eu sou, com aquela lentidão de cientista que se examina para encontrar um universo de sentidos. Se fustando, porque não encontra sequer um sentido para existir e revoltando-se como uma criança rebelde. Amaldiçoado e maldizendo esse corpo estranho que se redesenhou na puberdade e na vida. Já não perco o meu tempo com as bobagens de moça que se arruma para um homem depois dessarumá-la no quarto a sós – aí bons tempos!. Hoje estou aqui, olhando outra vez essa imagem estranha que ainda não se perdeu e se deformou criando isso. Enxergo a minha história inteira desenhada na pele, nas minhas estrias, no rosto e nos quadris. Não consigo fugir do que nunca me tornei e do que me tornei.

A filha de Andréa já lhe dava dois netos que sentavam no colo dela. No mesmo colo em que Andréa deu de mamar para a filha, em que deitou a cabeça do marido falecido e ouvia encantada a respiração dele. Agora é outro colo que conta histórias aprendidas com a vó antiga e que brinca com os netos. Hoje é outro corpo que é dela, mas mais amado e rabiscado.

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