Tchebutykin
É bem possível... O
relógio da mamãe é o relógio da mamãe. Aliás, talvez eu não o tenha quebrado de
verdade, mas sim aparentemente. Pode ser até que... Nós mesmos só existamos
aparentemente e que, na realidade, nada sejamos. Nada sei e ninguém sabe nada.
[...] Que há comigo para que me olhem assim? Natacha tem um arranjozinho com
Protopopov e ninguém vê... Estão aqui e nada veem...E, enquanto isso, Natacha
tem um arranjozinho com Protopopov...
(As três Irmãs, de Tchekhov)
Paredes brancas. No canto
da sala, uma cadeira de balanço vazia. Um homem sério atravessa a sala, observa
Carlos e Maria sentados no sofá vermelho, rindo descuidadamente sobre assuntos
banais. Toninho entra pela porta da frente e grita no ouvido de Carlos:
- Eh! Corinthias é
campeão da libertadores!! É campeão invicto!
Maria sorri. Carlos se
irrita e inicia a discussão entre os dois homens da sala. O primeiro falando
sobre as características que induzem a acreditar que a libertadores foi paga
pela Diretoria do time corinthiano, afinal esse time está dentro da máfia
futebolística; o segundo defendendo categoricamente o valor político e
libertário do timão. O homem sério não é afetado pela conversa, senta na
cadeira de balanço.
Acima deles, um relógio
ditando o horário. Daqui a pouco, começa o horário para o início das pegadinhas
do Faustão. As crianças correm em círculo, muitos gritos misturados, um pequeno
coro contra a torcida do timão também é formado, logo em seguida, acontece a
reação, outro coro faz a apologia do campeão da Libertadores: “aqui tem um bando de loko!”. A confusão
é armada, alguns afirmam que o único time que não pode marcar impedimentos é o
Corinthians, o tiozinho grita: “tá
bíblia, não existe impedimento pro Corinthias”. E o relógio pendurado na
sala dita as horas. O homem sério não escuta as vozes da multidão, instaura a
invenção do homem burguês, preso na sua personalidade e inventor da
singularidade do seu pensamento próprio, independente da massa. Ele é um homem,
o relógio não sente pena de homens, não sentirá pena de apenas um homem.
Maria foge da confusão e
caminha em direção a cozinha, as mulheres da família preparam a feijoada de
domingo. Os homens e algumas mulheres entendidas desses assuntos futebolísticos
permanecem com a discussão, nunca acabada e interminável, sobre as maravilhas
do Timão e os predicados sociais que a seita anti-corinthiana denota sobre os
torcedores. No futebol, o melodrama é lei, tudo é motivo para criar vilões,
loucos e mocinhos. O homem sério grita.
Ninguém escuta. As pessoas, que entram aos poucos na sala, estão preocupadas
com o debate entre as prerrogativas futebolísticas, não existe verdade no
futebol, existem paixões. Torcedores parecem críticos literários, a briga entre
os pareceres da literatura clássica não é uma questão racional, tudo passa pelo
gosto, é o embate técnico de paixões desenfreadas postas em campo de batalha.
São heróis brigando por heróis. Ninguém quer ouvir um homem sério, todos querem
ser ouvidos ao mesmo tempo.
O homem sério fica mais
sério. A multidão fica ainda mais fervorosa. Toninho pega o relógio na parede e
discursa apaixonadamente sobre as qualidades de ser um torcedor de coração, sem
corinthias ele preferiria morrer a estar vivo. Os torcedores apoiam com urras,
algumas vaias também são escutadas. O homem sério emudece, ficando cada vez
mais sem palavras. Toninho e Carlos brigam para ter a posse do relógio, nenhum
dos dois consegue, o relógio cai ao chão. Só a voz do homem sério ecoa na sala:
- em migalhas! (ele
chora)
Maria e Anita, que
preparavam a feijoada, entram na sala e nota o homem sério em prantos
calorosos.
- o relógio da mamãe
quebrou – diz Anita
- culpa é desses
fanáticos!
Maria apanha as migalhas
do relógio, Anita tenta acalmar os ânimos das pessoas presentes na sala de
estar. As crianças correm em volta do homem sério, inicia timidamente a
discussão sobre futebol, Anita ordena que os homens acalmem os ânimos. O homem
sério não é ouvido, recolhe as migalhas e sobe para o quarto. Não existe mais
relógio que dita a regra para homens que sabem o que querem quando enfrentam o
mundo.