quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A charada de Medéia

Homenagem  ao  poema "Nas cinzas de Gramsci" , de Pasolini

A voz é alta
O enigma é gordo
Todo o grito é grosso
Um passado morto 
[Os mortos nunca param de dizer suas alegorias]

Andam os desmemoriados sem reconhecer as vozes das lápides
A voz é aguda. A charada é crítica.
Enigma turvo
Os lobos uivam, fantasmas andam entre os vivos
Dizendo palavras de silêncio
A charada amarga cai no esquecimento
Parda.
Ardendo a alma dos filhos de Medéia.
Culpados, sem saberem os motivos.

Não conhecem o corpo materno
[que um dia sugaram o seu leite de sangue]
Não conhecem a sua Barbárie
Que as múmias oligarcas permitiram que a história apagasse.
Apagasse a identidade dos abortados vivos.  
Os filhos de Medéia  não têm imaginação
Não têm identidade
Vivem na sua mediocridade
Sem passado. Sem linguagem.
[ Suas palavras foram roubadas pelos militares que um dia maquiaram a Barbárie.
A Medéia que não tem corpo, arde na alma de seus filhos que não têm palavras]
A charada não tem palavras
Sonoras soltas
Medéia é a imaginação
Roubada 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Isso não é autoajuda


Aos meus amigos inesquecíveis e que não reconheço mais,
quando encontro na rua

façam uma lista de grandes amigos, quem você mais via há dez anos atrás?
(A lista, Oswaldo Montenegro)

, tem muita coisa que a gente tem vontade de dizer pra muitas pessoas. Às vezes, a gente passa a vida inteira sem dizer aquilo que tinha vontade e nunca disse. “Nunca” devia ser verbo. Essa palavra devia ser proibida, porque o tempo do nunca é impossível de imaginar com nosso pensamento, tão limitado e restrito ao planeta Terra. Mas, muitas vezes, as palavras são insuficientes, tem gente que sabe que o nunca é verbo, mas não gosta de falar. Tem gente que nunca vai ter arroz e feijão todo dia na mesa, vai morrer sem RG e sem CPF. Essa gente sabe que o nunca é verbo permanente, bate na porta e não pronuncia a sua sonoridade.
 (mas sempre pensei que a sinceridade era uma qualidade primorosa. Até aprender que os mentirosos vivem mais coisas, vivem inclusive os saltos e os voos da imaginação, vivem o dobro de todo mundo).
 tem muita coisa que eu queria dizer. Mas devo ter muito recalque, nunca digo no momento que eu deveria dizer. É engraçado! Mesmo depois de muito tempo, mesmo não amando mais o mesmo homem, se eu o reencontro com outras moças, fico pasma e sem fala. Ele nem me cumprimenta mais, desce pela rua Voluntários da Pátria, despreocupadamente, com suas obrigações cotidianas zombando sua cabeça.
Alguns dizem que a gente mesmo nunca percebe como o tempo muda; a percepção do tempo está nos outros. É através dos outros que percebemos as pentelhices do tempo. Tem amigos que costumavam comer na minha casa, hoje não tenho mais assunto, não sei nem por onde começar, perdi o costume de conversar com aquele outro, que já fora íntimo em momentos passados. Outros que me ligavam a cobrar, hoje eu não sei nem dizer oi quando passam na rua.  Não sei se me acostumo com essa mudança do outro ou se essa mudança é minha? Não sei se o tempo mudou o meu amigo ou se eu mudei e, absolutamente medíocre, não percebi as mudanças? Não sou filósofa para fazer a pergunta: como o efeito do tempo atinge mais o outro do que você próprio? Por que será que a gente sempre tem essa impressão? Deve ser vaidade, não queremos que o tempo nos ataque, mas é nos outros que a gente vê.  O tempo ataca, quando se está distraído.
Tem muita coisa que eu gostaria de dizer. Mas eu não tenho assunto. Não sei falar português, quando percebo narcisicamente que os ataques do tempo foram maiores para um antigo amigo do que foi para mim. Assumo logo uma posição, nego a existência do tempo. Me engano, minto tanto pra mim, não tenho coragem de aceitar que o tempo também me ataca todo dia. E se um dia, distraidamente, algum amigo antigo conversar comigo, eu não saberia mentir uma intimidade que não possuo mais, conversaria com ele como uma pessoa desconhecida. Era como se, assim, conhecesse outra pessoa que precisaria de mais tempo para me acostumar. Envelhecer também é um processo de aprender consigo mesmo quem é; é o momento de conhecer em si mesmo a pessoa que não conhecia. É provável que eu nem ame mais os meus velhos amigos, mas a pessoa que eu era neles. Eu sinto saudades da minha mentira do passado, não gosto de imaginar que o presente é um enorme conflito do hoje e do ontem. Os tempos vão esparsos, peneirados como água, derramam na mão e  ficam submersos nos poros. Me esqueci que tudo isso é uma questão narcísica. Velhos amigos, eu rezo pra não encontrar vocês na rua, não gosto de ver em vocês o efeito do tempo que também acontece comigo.
Só que tem tanta que eu queria dizer. Queria perguntar: como estão? Mesmo sabendo que seria impossível continuar a conversa. O assunto morreria no momento que nascesse. Mas até tentaria dizer: eu já me reconheci em você, por isso te amei, eu já aprendi com você, por isso que mudei. Eu já liguei pra você às duas da madrugada, já rimos muito e você já me deu ótimos abraços quando precisava. Por isso, não me acostumei ficar sem você. Mas como é importante! Tem escritores que dizem: é melhor já agora, você, leitor, aprender a abandonar os seus amigos desde criança, porque os melhores amigos são aqueles que você precisa abandonar e desapegar, o homem precisa ter coragem de conhecer a vida sozinho e criar novas experiências. A primeira lição do homem é abandonar seus amigos. (acho que é o Henry Miller que disse isso no livro Trópico de Capricórnio, claro, não exatamente com essas palavras) Isso não é autoajuda, isso é vingança contra o tempo. Posso não dizer tudo na hora, mas sempre marco depois. A memória é o pior defeito do escritor, mas nem sempre os defeitos são tão ruins.
Não se esqueçam nunca dessas mentiras: 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Terminações


Quatro anos depois, a B. revê o Odisseu descendo a escada do metrô. Ambos pararam, começaram a conversa curta. (De longe, qualquer um mais atento, recordaria de uma música do Paulinho da Viola).

Odisseu - Tenho uma pergunta

B.– Qual?

Odisseu - Você é você ?

B. - Depois de você eu nunca mais fui eu, me tornei outra. Então, você ainda enxerga o mundo como antes? Ainda sonha os mesmos sonhos? Ainda quer mudar o mundo?
Odisseu- eu voltei da Argélia esses dias, os meus sonhos virou ruínas, o mundo parece tão diferente agora. Você tá diferente!

B. – onde está Francine?

Odisseu – casou com um Francês

B. – eu casei com um alemão, descasei, casei de novo com um baiano, depois que foi embora. Mas agora... eu estou sozinha

Odisseu olha os olhos grandes, imensos, decaídos no rosto. Esquecendo a lembrança dos antigos olhos daquela mulher que, um dia, já fora sua amada. As mãos ainda pequenininhas, menores que o corpo, mexendo e tremendo muito, ela sempre faz isso quando sente o nervosismo atravessando a nuca. O corpo dela é frágil, qualquer toque parecia que a estrangularia, lembrava um pássaro com frio e sem penas, todo encolhido aos braços dele quando estavam na cama. Era essa lembrança que sentia quando se aproximava dessa mulher. B. sentiu tristeza. Sabia que o presente recordaria o passado, mas o desejo ia continuar no âmbito das ideias. O corpo pedia ele, mas já o esquecia completamente.

B. – eu tô atrasada, preciso correr

Odisseu – o metrô tá chegando

B. – a gente se ver

Odisseu – a gente se ver 

domingo, 11 de novembro de 2012

O Cenário Político Brasileiro


(isso não é uma tese, é um depoimento) 


O que mais incomoda hoje em dia é que eu não tenho ideia (e talvez medo) de apoiar assumidamente qualquer partido político. Falar abertamente do que representa PT, PSDB e etc, hoje em dia, é um debate infinito, acobertado por uma série de hipocrisias, preconceitos estúpidos e ódios mortais. Não conhecendo o processo histórico com absoluta firmeza. Vivenciando um momento de booms (booms de ideias políticas, de preconceitos escancarados e de criações estéticas esparsas), ficar perdida com tantos acontecimentos, apercebendo-se uma fagulha de pó ao meio de tantas pedras sólidas e maduras, tem momentos que, simplesmente, não sei o que fazer. Não sei o que falar, só tenho perguntas. 

Meu primo me deu o primeiro contato com política. Acho que estive em uma passeata [eu acho] embaixo no MASP, defendendo imagino o PCdoB. Thiago ainda conheceu com mais intensidade o governo FHC, eu conheci o Brasil-Lula e, nesse momento, o Brasil pós-Lula. Sempre, ao PT, ouvi críticas negativas dentro de casa. Muitas vezes, influenciada por minha família pensei em defender partidos da oposição. Eu sempre gostei de ler, me interessava por textos de ficção desde criança, então, quando entrei na faculdade a minha intenção sempre foi, - talvez para preencher o espaço vazio desse passado brasileiro que ninguém fala, - falar do Brasil, escrever sobre esse país, ler os escritores daqui, conhecer as pessoas daqui.

O que eu quero, talvez, é falar o que significa viver essa confusão de perspectivas, existindo no meio disso, tentando criar uma espécie de dignidade e lucidez diante desse mundo de tagarelas que não estão interessados em expor os pontos de vistas esquecidos. Julgam os inimigos sem ao menos estabelecer as contradições. A impressão que eu tenho é que eu vivo no mundo de tagarelas. Isso é um fato. Ninguém fala de passado nenhum, o nosso passado é muito farto, mas o presente é muito desejado, no entanto, me parece um tanto impalpável, invisível, muito indeciso. É um mundo de melodramas e tagarelices.

Se eu vivesse na metade do século XX, apoiaria sem pestanejar PCdoB ou PCB (reformistas x revolucionários; partidão x porra loucas) . Ou mesmo, viveria como a Leila Diniz, amiga dos poetas, amante dos homens, amada por cineastas. Porra louca total! Uma dessas vadias imortais no mundo e que escancarou as contradições da esquerda. Tais contradições que ainda estão presentes no dia de hoje, talvez mais abertamente, afinal vivemos num país democrático, hoje os atores podem assumir os seus papéis e expor as suas plataformas políticas no meio do teatro político. Nesse jogo, esse gênero cotidiano, mais vivenciado pelos civis da sociedade, chamado política, é levado, até as últimas consequências, a várias experimentações estilísticas e estruturais. Os jornais brasileiros tendem a transformar esse jogo em melodrama.  Já a extrema esquerda gosta de se fazer de santa, transformando esse jogo em melodrama negativo, nem PT é confiável, nem PSDB é, tudo é faria do mesmo saco. (Walter Benjamin chamaria esse fenômeno social de estetização da política; aliás, ele diria que isso é um péssimo sinal, que deveria acontecer o oposto, a politização da arte). Muitas esquerdas insistem em falar que vivenciamos uma ditadura militar, não sei se por romantismo ou por insistência em se tornar heroica.  O que é terrível, um país que precisa de heróis, é uma nação pobre e fragilizada.

De qualquer modo, a zona de guerra mais conhecida no cenário político está entre PT e PSDB. Ambos partidos políticos fortes, cheio de picuinhas, cheio de problemáticas e contradições, mas não são legendas, são partidos. 80% da população apoia o governo Dilma, o que é realmente muito estranho? O que isso significa? Significa alienação geral? O mundo é dominado por burgueses? O que é isso? Ou contrário, significa terrorismo, o mundo é dominado por petistas ignorantes e analfabetos. Muito engraçado isso. No governo FHC, além da dívida externa, também era um país de analfabetos e ignorantes. A pergunta que não quer calar: por que esse ódio mortal com PT? Não é com PT, o que mais me irrita, não é isso, o que é desastroso nessas análises tendenciosas. É que o ódio tenta atacar os dirigentes, mas acaba atacando toda a base petista, que é absolutamente comprovável, quem defende PT, não é burguês, é gente de favela, é pobre, é operário. Lula ser considerado um símbolo de um presidente pobre e operário é sinal de identificação, muito mais do que se imagina. Não é um símbolo qualquer, não é signo para se jogar no lixo. Atacar o PT desse jeito é um absurdo. Chamar petistas de burros e ignorantes é sinal de estupidez e intolerância de classe.

Concordo. O PT não é isento de críticas, mas também ele não é o vilão da novela mexicana que tentam criar. Diante dessa mídia, sabiamente por todos hegemônica e [invisivelmente] tendenciosa, a crítica ao PT não pode partir dos mesmos argumentos que são usados pela Direita. Não é assim que a contradição será exposta, a exibição disso deve ser posta por outros meios. Senão, eu sou capaz de acreditar que a extrema esquerda é na realidade um braço da grande Direita.

Antes de qualquer coisa, é preciso recordar o passado. Esse mistério político que é negado para essa geração, ninguém fala, ninguém comenta, ninguém sabe. A Ditadura Militar Brasileira deve ser posta no jogo, as cartas dos presos políticos no passado precisam estar na mesa. Imitarei Adorno, em Educação pós Auschwitz[1], o passado é muito farto. As condições estão dadas, as repetições da história podem estar acontecendo ou podem acontecer, mas as coisas precisam ser faladas. A juventude não pode mais viver nesse mundo de joguetes políticos, tagarelas intolerantes, pois fica difícil assim. A gente realmente não faz ideia de quem está no cenário político, jogamos o jogo com a pura intuição, correndo o risco do passado se tornar presente outra vez, mas usando outras máscaras.

De qualquer modo, terminarei o meu depoimento expondo o seguinte. Certa vez, estava conversando com uma amiga, ela falou uma frase que guardei na memória: “ eu sou revolucionária, voto nesses reformistas do PT por causa disso, para as pessoas que se fodem mais, não se foderem ainda mais. Posso não entender as Esquerdas, mas não tenho dúvidas que odeio a Direita”. Reitero o que ela falou, posso não entender de história, de política e não compreender as Esquerdas, mas não tenho dúvidas nenhuma que o inimigo é o mesmo. O inimigo é comum.  



[1] http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=179:educacao-apos-auschwitz&catid=11:sociologia&Itemid=22

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Rock n’ Roll e o fim do mundo


- Quero um pouco de a black tea and blues, please! Eu gosto e odeio São Paulo,
o frio rasgante
junto com desequilíbrio
 do calor cortante
são,no mínimo,
 intrigante. 
Meu, eu sei que isso era pra ser uma conversa, não uma poesia.
Do que vamos papear? 
- A revolução
- artística?! Magina...  A gente conseguiu algo em 1968, uma naturalidade em naturalizar o ato de romper. Pena que só deu pra fazer isso no âmbito estético, tem gente que não tem a mínima ideia do Glauber Rocha e dos poetas populares. Estou fazendo crítica. Não era pra gente falar besteira
- como anda os seus casinhos?
- tô noiva, vou casar nos Caribes no dia 22 de Outubro de 2040. É meio longe, porque a gente quer assistir o mundo acabando
- quando que acaba?
- ah! Falaram que ia acontecer em 2040, a gente quer ver. Tanto que o casamento vai ser numa ponte. Numa ponte amarela, a música de entrada vai ser uma música bonitinha, aquelas bem calmas, sabe.  A gente pensou em Valsinha, de Chico, até Clair de Lune, de Debussy. Aí vai ser bem trash, magina todo mundo pegando fogo e uma canção bonitinha no fundo
- quantos anos vai ter?
- eu (2040 – 1992 = 48), eu vou ter 48 anos e serei uma anônima. Talvez mais feliz, talvez mais triste.  Muitos amigos já terão morrido, quem sabe eu terei filhos até lá ou continuo sendo amante do Armando. Betinha, quando voltar de Alagoa, não se esqueça de passar um tempo na minha casa, eu não cozinho bem, fazer o quê, mas posso fazer café 

O monstro de olhos vermelhos


 1
   
Escadas largas, grandes. O céu noturno gritando socorro por sua falta de estrelas. Um homem sozinho no meio do caminho bebe uma latinha de cerveja. Os olhos vermelhos vigiam o lugar, o cachorro late para um ratinho que na fuga tropeça numa lata de cerveja.  Cão come o ratinho fugitivo, o sangue se mistura com os olhos vermelhos. Olhos que fixam na figura do homem.


Dois minutos atrás, o bêbado jogou a lata de cerveja, não notou a vida que acontecia ao seu redor. Cantarolava uma canção inventada. Ele, chamado pelos amigos de Wilson, olhava para os dois bolsos da calça. Uma calça verde, o bolso direito furado, o esquerdo guardando uma pilha de papéis inúteis.  Um desses papéis era uma carta de sua ex-esposa:


“ Fui embora. Arrumei a minha mala, vou morar em Espírito Santo, levei embora comigo a Cris. Pelo bem dela e nosso, não nos procure, estamos bem.
Assinado,
Ann “


Wilson casara com Ann em 1989. Ele tinha uns vinte e dois. Ambos tinham se conhecido no Rio, era um show de rock de uma banda norte-americana. Foi um acaso que se apaixonaram, outro acaso que se traíram, mais um infeliz acaso que se separaram. Os olhos vermelhos do cachorro lamentavam  a falta de água fresca, o animal uivava para lua. O homem chorava sozinho na noite escura. Rasgava a carta da Ann,  ele pensava, a caligrafia de Ann sempre foi caprichosa, ela sempre foi uma mulher bonita, mesmo agora já envelhecendo, continuava bonita.

2

Uma tropa de policiais fazia ronda próximo de uma favela. Tinham trocado tiros com uma malta de bandidos, entraram em um beco. Escutaram um estrondo, ouviram um som qualquer. Confundiram com bala de revólver. Atiraram pra matar.

Polícia 1: Existe uma ordem dos homem lá de cima, a gente respeita
Cachorro: au au
Polícia 5: os meleque estão escondido
Cachorro: au au au aua au

A polícia 6 atira no cachorro para matar, o cão foge de medo. Os olhos vermelhos brilham debaixo de um monte de lixo.  Os policiais não encontram nada no lugar. Há uma trilha de sangue que inicia nas escadas e termina na lata de cerveja, misturada com o ratinho que morreu pelo monstro dos olhos vermelhos. Um inocente desarmado morre sem o término da história, outro caso interrompido. 

3

O monstro dos olhos vermelhos sai do esconderijo. Naquele lugar ermo, existem dois corpos.  O cachorro faz o trabalho do perito, fareja os dois corpos, o animal encontra os resíduos da carta de Wilson, uma memória da tristeza, daquele cidadão anônimo, é vigiada pelos olhos vermelhos como se fosse alimento.  

A vida do cidadão anônimo, para os olhos vermelhos, pode significar nada. Na guerra escondida, entre ratos e cachorros, Wilson foi uma vítima invisível. É provável que nem a família dele saiba do acontecido. Tudo bem. O cão terá mais carne para comer a noite. Wilson morreu de sorte e de tristeza, todos os lugares são ótimos para suicídios involuntários e desistências cabais. A morte de um cidadão anônimo interfere nos homens de bem igual ao um rato, é mais fácil sofrer por um bichinho morto do que brigar com monstros de olhos vermelhos. 

domingo, 4 de novembro de 2012

Sobre Avenida Brasil


1

Por causa da febre dessa novela, pensei e repensei muito se eu escreveria um texto, falando sobre ela. Na internet, vi resenhas criticando-a, como opiniões também elogiando. Uma crítica que me chamou a atenção (que gostei bastante), explicava onde se encontrava os aspectos machistas da novela, vou deixar nas referências abaixo[1]. Entretanto, acho que não vou fazer exatamente uma crítica, queria pensar essa novela. Por que houve tanta identificação popular? A novela conseguiu tanta audiência igual aos tempos de outra também conhecida Vale Tudo, como isso aconteceu? Me pergunto: será que houve uma mudança de estrutura dramatúrgica nas novelas para chamar atenção do público?
É até meio óbvio! Expor que as novelas possuem argumentos parecidos. Todas maniqueísta, o bem contra o mal, o mocinho sempre de olhos azuis, rico, arranjado uma experiência amorosa indo em direção ao sucesso. Mas, antes, é preciso lutar contra todos os obstáculos, o principal, na maioria dos casos, é o dinheiro. Mantendo o status quo intacto. Essa estrutura é mais antiga que a televisão, conhecida na literatura como estrutura de folhetim. José de Alencar poderia ser considerado o vovô das teledramaturgias. Aristóteles é o tataravô dessa estrutura. Ao contrário da teledramaturgia, José de Alencar e Aristóteles são cânones, dignos de serem estudados na academia; o inverso significa alienação, ignorância e etc. Enfim, não dá para negar que as pessoas se identificaram com essa novela, por isso, no meu entender, não posso fechar os olhos pra isso.
 Em Vale Tudo, surgiu o mistério mais famoso da televisão brasileira. Até quem não viu, conhece. A pergunta “Quem matou” nunca fez tanto sucesso do que nos tempos entre 1988 e 1989. Afinal, “quem matou Odete Roitman?”, uma personagem absolutamente preconceituosa, mesquinha e morta no final das contas por alguém que pouco se podia esperar.  É engraçado como essa tática está presente até os dias de hoje, quando há o famoso assassinato do final de novela, todos pensam quase de maneira previsível: “é alguém que não tem nada ver, sempre é assim, alguém que a gente não imagina”. Dito feito, na novela Avenida Brasil, seguindo a famosa estrutura de assassinato de final de novela, terminou com alguém que tinha tudo haver. E todos no meio da rua: “ não , não, vai ser alguém que nada tem haver com a história”. Essa é a maior prova de como “Vale Tudo” entrou no imaginário das pessoas, inclusive em termos de estruturação.


2

A atriz Beatriz de Toledo Segall que interpretou a famosa vilã Odete Roitman. Em uma entrevista, disse que essa novela foi tão importante para o Brasil, auxiliando inclusive no impeachment do Fernando Collor[2]. Enfim, não vou esquecer jamais a maravilhosa interpretação de Renata Sorrah, que fazia a filha de Odete Roitman, a Helena Roitman. Quem não viu, vale a pena ver mesmo! Procure no youtube.  Aliás, sou uma certa fã incontestável dela, desde Nazaré, de “Senhora do Destino”, que era ela a novela toda, afinal o toque de humor estava na vilã.  
O que vamos falar, agora, exatamente sobre isso. Adriana Esteves fez a Nazaré jovem, Renata Sorrah a segunda fase. Esse toque de humor, de certa forma, acompanha as vilãs nas novelas brasileiras, não sei precisar quando foi o início, mas em Odete Roitman acontece isso também. Então, de certa maneira, a Carminha demonstrar alguns momentos de humor não foi exatamente uma grande mudança. A Nazaré era mil vezes mais engraçada.
No entanto, entre Nazaré e Carminha, na segunda personagem existe uma mudança de tratamento aos vilões.  O que tem mudado nas estruturações das novelas e me chamado a atenção foi isso. Não foi só com a Avenida Brasil, em Passione e A Favorita também aconteceram essa mudança. A mudança é enfraquecer um dos elementos primordiais de estruturas folhetinescas: o maniqueísmo feroz.   
As novelas são conhecidas com um argumento clássico. Uma dicotomia absolutamente clara: a personagem má versus a personagem boazinha. Dependendo do enredo, essas variações de caráter podem mudar, não necessariamente depende da classe social, não é sempre a boa, pobre, e a má, rica. Isso depende do que a novela discute, isto é, o tema. E, principalmente, o ponto de vista.  Por isso, a classe social varia, mas não vou negar que, em todos os casos, a novela transmite um ponto de vista conservador. É preciso lembrar quem é que produz essa cultura, qual é o modo de produção.


3

Em Passione, relembremos a vilã Clara. Mulher sensual, um rosto de anjo que seduziu um italiano e enganou toda família dele. Entretanto, ela tinha a sua irmã, que protegia e amava, sendo capaz de fazer até coisas boas. Era a irmã dela que trazia algumas características mais humanas para Clara (atriz Mariana Ximenes). Teve um momento que o público até acreditou na mudança de Clara, mas no final isso foi invertido. A vilã mostrava qual era o seu verdadeiro lado, ela era uma vigarista, só amava e respeitava a irmã. Isso balançou um pouco a estrutura da novela, o maniqueísmo foi posto em dúvida ou, pelo menos, em cheque. Os vilões, no final, eram inimigos, Clara e Fred (ator Reynaldo Gianecchini) desconfiavam um do outro, destruíam os planos um do outro.
Em A Favorita, é importante lembrar que o mesmo autor dessa novela escreveu também Avenida Brasil, a estrutura do famoso assassinato de final de novela foi prolongada, a dúvida foi logo posta no começo. O público defendeu a vilã (Flora), depois a mocinha (Donatela). Patrícia Pilar e Claudia Raia interpretaram essa disputa que enfraquecera muito o maniqueísmo feroz.


4


 Avenida Brasil imitou o mesmo mecanismo que A Favorita, os vilões tornaram heróis, esses se mostraram ainda mais perversos e frios do que os vilões. Nina/Rita e Carminha vivenciaram as mesmas coisas, também vieram do lixo, escondem de toda a família Tufão muitas coisas do passado. Toda a ação dramática acontece por causa do passado, o presente obriga desenterrar as coisas que estão no passado para Nina e, ao final da novela, para Carminha no intuito de desvendar toda a verdade. No final, Carminha muda completamente a sua postura com relação a sua conduta na vida, enfrentando e matando o seu pai. Daria um bom Édipo Rei, afinal a personagem trágica dessa história não foi a Nina, ela teve a chance de vivenciar um final feliz, mas a heroína edipiana foi a Carminha.
Carminha matou o pai, matou o homem que amava, foi exilada de sua casa e terminou onde começou a sua infância no lixão. Antes, propiciou uma vida mentiras e de hipocrisias sociais vivendo na família Tufão.  A mãe Tufão, entre todos da família, era a que mais defendia a esposa do Tufão, católica, bem comportada e dissimulada; desse ângulo, a ex-faxineira era a mais hipócrita, pois propagava e determinava mais as vivências de convenções sociais hipócritas, ao mesmo tempo, que também mentia e enganava em nome do prazer sexual.
O argumento entre protagonista e antagonista propiciava uma relação entre Rita e Carminha de amor e ódio. O público no início da novela teve tanto ódio da Carminha de bater em criança e etc, que desejava a morte da vilã. No final da novela, esse ódio foi transferido para Nina, pois ela nunca tinha coragem de denunciar a inimiga, enrolava e se perdia no meio do caminho. Entre todas as personagens, era Nina/Rita quem conhecia mais a Carminha, mas tinha uma mistura de medo e respeito, no final da novela isso ficou mais claro com a cena do lixão e o almoço entre elas. Ambas tinham ódio e respeito.


Conclusão

Esse enfraquecimento do maniqueísmo pode significar uma mudança de estruturação das novelas brasileira. Uma nova maneira de ideologias políticas conservadoras entrarem na vida do cotidiano, isso se continuar mexendo com elas, trazendo elementos narrativos que são da modernidade literária. De brincar com o jogo entre protagonistas e antagonistas. Isso pode ser, por um lado, interessante de notar, afinal talvez o público estivesse cansado do argumento manjado e clássico. Ao mesmo tempo, esse elemento sedutor pode significar novas formas de explicar o status quo e mantê-lo assim sem luta e sem crítica. O que pode ser muito preocupante. Como diz um livro de Ventura (1968 o ano que não terminou), mas em outro contexto: a direita tá sendo mais dialética que a esquerda!.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Tagaralices


1

Na minha infância, uns vinte anos atrás, me chamavam de pentelha e tagarela, sempre recebi advertências de professores em casa, dizendo pra minha mãe que eu era terrível, não parava quieta. Não era muito entendida das palavras, não sabia o que significava a palavra “tagarela”.  Mas a primeira definição de tagarela que conheci era: “alguém que falava pelos cotovelos”.
O que covenhamos é absolutamente estranho. Cotovelos não têm boca. Como andava sempre com os meninos, (porque não gostava de brincadeiras de meninas, eram muito paradas e entediantes).  As minhas professoras sempre chamavam a minha atenção:
- ei menina, fica quieta...
Sempre chamavam a minha mãe.
- a sua filha não tem jeito, é uma pentelhinha!

2

- Pipa, você sabe o que significa inefável?
- inefável? Ô psora, o que é inefável?
- é algo que não se pode dizer
- ué, então diz,
Manias de coisas proibidas! Fiquei querendo saber o que não se podia dizer do Inefável, mas a professora me olhou com um rosto medonho e fui levada para Diretoria. Em casa, tinha uma advertência bem grande: “A sua filha precisa aprender a se comportar e não fazer mais perguntas indecentes!” . 
- que pergunta indecente você fez, Pipa?
- eu perguntei o que era inefável?
- filha que palavra é essa?
- então... a professora falou que não se pode dizer, então eu disse, ué então diz. Mamãe, a minha curiosidade aumenta quando as coisas não se podem dizer. Mãe, o que não pode dizer do inefável?
- filha, vai pro quarto!
- por que?
- você é muito perguntadeira!

3

Perguntadeira é sinônimo de tagarela? Afinal de contas, o que não se pode dizer do Inefável? E se for uma daquelas coisas de adulto, gente grande sabe! Os adultos são cheio dessas pilhas, tudo para eles é dicotômico ou, muito mesmo, generalizante. Por exemplo, a minha mãe vive falando pra mim que os homens são todos cafajestes. Se eles não são, vão ser um dia.  Adultos!
Afinal, não se pode falar do inefável, porque ele é feio. Tipo, o monstro do lago. O que há de estranho nessas palavras? Puxa, uma palavra tão bonita esconde uma coisa feia, igual o lago da minha casa! ( Eu preciso fazer uma pausa para explicar o monstro do lago. Na frente da minha casa, tem um lago bonito que a gente sempre brinca nele, um dia era quase noite, a minha tia tentou tirar a gente lá ( eu e a turminha!). Então, ninguém quis sair, até que ela nos convenceu que, a partir das sete horas, o monstro do lago ficava lá para comer criancinhas. É engraçado! Que depois mais tarde. Eu tinha dezoito já, fui tomar banho lá e não encontrei nenhum monstro do lago, já tinha passado das sete). Quanto ao inefável, acho que não dormi a noite, pensando nessa palavra, pensei procurar ela no dicionário. Mudei rapidamente de ideia. Uma palavra tão bonita não deveria estar nos dicionários, já que é feia para os adultos – porque grande parte deles não têm imaginação, - não será feia pra mim.  Quando se tem uma fôrma de bolo, a gente pode preencher com recheio que quiser, minha madrinha vivia falando isso. No vazio, sempre aparece o novo, é só não ter medo do erro. Nessa idade, a gente aprende algumas coisas. As perguntas nunca são inteiramente respondidas pelos homens grandes.


   4

Com dezesseis anos, li um livro de Bruna Landim, “Do verbo ser irregular”, que explicava o termo “Tagarela”.  A autora citava um trecho de Dostoievski ( esses malditos russos!) , do conto “O subsolo”, que trazia um narrador que dissertava sobre todos nós com teor negativo: “Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como todos nós. Mas que fazer senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água numa peneira”. 
Bruna Landim disse que, uma vez, percebeu a diferença entre gostar de um cara e não gostar. Gostava de um rapazinho, quando sentia vontade de conversar; não gostava do cara, quando sentia repentinamente o mutismo no seu coração. Ficava absolutamente fria, não emitia sequer um espirro.  Desse jeito, entendeu tudo que tinha que entender sobre linguagem, sendo tagarela quando criança e, absolutamente, muda e séria com alguns rapazes na juventude. Eu cito um trecho do romance dela: “A tagarelice é o uso da forma. O papeador sempre diz experiências em suas histórias, mesmo que elas sejam mentiras. Muitas vezes, o papeador é confudido com o tagarela. Mas quem não consegue notar a diferença disso, não consegue  aproveitar a graça da poesia cotidiana. Existem tagarelas que não pronunciam sequer um espirro de resfriado”.
Eu entendi tudo, lendo essa definição. Desde criança, eu era uma poetisa, a tagarelice escondia o mundo no meu coração. Era minha forma primitiva de lidar com a linguagem. Ser tagarela era uma maneira de lidar com o som, espontaneamente lidava com lado lúdico das palavras, não contava experiências, porque elas sempre nasciam  com uma aparência surrealista. Coisas de crianças! Se a gente continuasse com essa cabeça, com tanto despudor, o Picasso ficaria de cabeça em pé. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

À procura de amigos

Procura-se alguém pra conversar, normalmente eu converso com a parede do meu apartamento, mas ela não é muito conversadeira. A conversa vira um imenso monólogo, não avança e nem regride. Por isso, pode ser até uma alma ruim, mas alguém que possa me propiciar um diálogo.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Sedução


Dois olhos negros olham duas mãozinhas trêmulas. Nenhum dos dois recorda como começa um papo. Eu podia citar Spinoza, Engel e Hegel, posso até falar dos meus últimos trabalhos como pianista, será que eu chamo atenção dela? A mocinha não abre a boca, o que será que está passando na cabeça dela? Podia tentar adivinhar o pensamento? É! Assim, ela vai pensar que eu sou cara certo pra ela...
- a gente vai tomar cerveja? – disse ela
- sim, alguma preferência?
- pra mim tanto faz
Ela está tão bonita. O que será que ela quer comigo? Poxa!
- E então... e as suas canções?
- pois é, preciso mostrar pra você
Ela começa o papo e fica em silêncio. Esses olhos que olham trigueiros para a mesa, o chão e o céu. O que eles esperam do mundo? Queria tanto essa boca! O que será que ela está falando? Deve ser algum enigma, estou um pouco tonto com ela aqui. Essa menina pode falar palavrões terríveis na hora da cama, mas é apaziguado quando saem dessa voz doce. De novo. Ela ficou em silêncio. Vou ver se consigo adivinhá-la.
- Você tem, como chama mesmo?, acho que é complexo de alguma coisa, sabe?
- não sei. Do que você tá falando?
- Poxa, tem um livro, o Freud fala disso, é, como é o nome mesmo?
- complexo de Édipo
- Isso. Você tem Complexo de Édipo? Por isso, esse receio em assumir compromissos longos, os homens te assustam um pouco
Ela apenas balança a cabeça concordando.
- Tá bom! Tá bom! Vou parar de ler os seus pensamentos



Ler os meus pensamentos. Cada coisa! Será que esse cara não vai me levar pra algum lugar? A gente vai ficar aqui jogando conversa fora. Aí que vontade de não fazer nada!
- adivinhei o que você tava pensando
- uhum
Nunca vou entender. Caramba! Será que isso é coisa só de homens? Será que é só insegurança do primeiro encontro? Por que ele quer desvendar o mistério que existe dentro de mim? Não existe nada além. Só existe isso. Será que não é um misticismo que jogam nas mulheres, uma espécie de invenção dos mitos na sociedade. Eu não quero um homem que adivinhe os meus pensamentos, quero alguém que é tão banal quanto eu. No final das contas, o que existe é só uma pessoa, não quero que me transformem em musa. Elas (as musas) falam em enigmas, eu falo português, trazem o passado sedutor e atraem os viajantes com as suas vozes. Eu gosto mais de ouvir do que falar. Só quero mesmo que ele me leve pra cama e a gente namore bastante, afinal, é um modo de escapar do tédio que é morar nessa cidade. Que vontade de falar pra ele que a Esfinge é um mito, na frente dele só existe apenas uma mulher. Lá vai ele abrindo a boca.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Carta ao amigo: Felicidade, arte e outras besteiras



Meu amigo,

I
Gostaria de falar de mim. O tempo corre, pouco tempo temos e não nos vemos já não sei quanto tempo. Eu estou bem. Como anda as viagens? Como anda os filhos? Ainda é casado com a mesma pessoa? Está feliz? Não saberia nem começar as perguntas que eu tenho pra falar com você. Ficaria em silêncio se a gente marcasse um encontro qualquer pra conversar, ficaria ouvindo suas histórias, seus sonhos, realizações e mesmo decepções. Perdi prática com a fala, deixei de articular certas palavras, talvez deixei mesmo de acreditar.

Estou bem triste. Sinto saudades da sua companhia. O mundo é um imenso teatro, não sei se aguento viver com tantas mentiras, não ando suportando a personagem que inventei para mim. Meu sorriso é meio triste. Tem muito ator nesse redemoinho chamado mundo. Apesar de tudo, queria dizer que a minha saúde está boa; é que eu sinto falta mesmo de conversar com você. Mas o mundo moderno tirou de mim a capacidade de me comunicar com os outros, a estrutura social me ensinou a acostumar com certas infelicidades. Acho que nem conseguiria pronunciar a palavra: Bom dia!, se a gente marcasse um encontro.

O tédio tem sido meu grande amigo. Em tardes de domingo, noto-me um ser humano comum, um ratinho frágil, incapaz de liderar revoluções, principalmente, por medo. Ontem, eu sai com um rapaz, ele me propôs namoro, eu fiquei tão embrulhada com isso que resolvi não aceitar. Não consigo suportar a ideia de outro morando nesse apartamento, a minha louça suja e entre outras coisas. Deu-me certa ânsia, quis a solidão.

A solidão é o sentimento mais comum dessa modernidade. Não acho que na infância existe felicidade, nem tenho certeza que toda criança será adulto consequentemente. A vida adulta é uma invenção cruel, um padrão a ser seguido, um modelo já pré-postulado. Ao fugir da regra, nada me garante uma vida adulta serena e realizada; o que tenho por certo é uma vida incomum. No mínimo estranha. De uma certa liberdade ou felicidade que poucos sentirão inveja (é querido! Essa frase é conhecida da sua pessoa, certamente, culto como é, já reconheceu em um certo livro chamado “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, essa frase está no diálogo entre Joana e o Professor).  Essa escritora está muito na moda hoje em dia, até evito falar o quanto ela me influenciou. Ainda me influencia, as minhas leituras ficaram muito academizadas. De certa forma, virei uma chata. Você tinha razão, uma hora a minha insegurança mataria a minha alma de artista.

II

A arte é uma barbárie. Não consigo pensar nisso sem pensar em amor, angústia ou ódio (um pouco de frustração também). Desisti. Tento agradar demais os outros, não dá pra criar assim, tão atrofiada e frágil. Sinto saudades de conversar com você, uma palavra amiga qualquer entenderia algumas tristezas difíceis de elaborar verbalmente. O meu olhar no seu bastaria para o entendimento. Como artista, no mundo tão teatral, penso que a estética não mudaria o mundo, penso que já tem muitos, eu seria só mais uma. Não posso fazer mais nada de novo. A novidade hoje é o grande padrão, não suportaria ser nova o dia inteiro, sendo assim, tão absolutamente banal. Morreria de tédio.

Não quero ser artista. Prefiro ser professora para estudo infantil, viajante no mundo dentro de um carro ou mesmo uma cidadã brasileira comum inserida numa sociedade em que o paradigma é o consumo. Não estou feliz, porque abandonar essa ideia de inventar arte não tem sido fácil, mas a minha descrença é tão forte. É tão intensa. Não suportaria mais vender discursos de utopias pintadas de flores e construída por uma humanidade sonhadora. Devo discordar de muitos artistas por aí e dizer: a arte não basta, o homem precisa de mais.

III

No mundo sem Deus, fica difícil observar quem poderia estar altura dessa entidade. Já que a arte não é um inimigo forte suficiente. As musas seduzem a santidade de vez em quando, mas é tão rápido, que a santidade volta rapidamente viver a sua vida de caretices e crendinices. A hipocrisia esconde essa relação, nega o sexo. O mundo não para o tempo. O tempo é a única força que eu acredito.

IV

Meu amigo, as coisas estão duras em São Paulo. As mudanças podem acontecer, podem... Mas isso ainda não significa nada, a vida sempre será dura. Não se brinca com ela, se morre, se perde e envelhece. Eu estou triste e apreensiva, mas não quero conversar, só quero um amigo, me sinto um elefante, todo dia volto despedaçada e, cada dia, morre uma esperança. Fique bem, meu amigo, durma bem e tenha sonhos.

Sem mais,
De sua doce amiga,
M.M. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Domingo em família


Tchebutykin

É bem possível... O relógio da mamãe é o relógio da mamãe. Aliás, talvez eu não o tenha quebrado de verdade, mas sim aparentemente. Pode ser até que... Nós mesmos só existamos aparentemente e que, na realidade, nada sejamos. Nada sei e ninguém sabe nada. [...] Que há comigo para que me olhem assim? Natacha tem um arranjozinho com Protopopov e ninguém vê... Estão aqui e nada veem...E, enquanto isso, Natacha tem um arranjozinho com Protopopov...

(As três Irmãs, de Tchekhov)

Paredes brancas. No canto da sala, uma cadeira de balanço vazia. Um homem sério atravessa a sala, observa Carlos e Maria sentados no sofá vermelho, rindo descuidadamente sobre assuntos banais. Toninho entra pela porta da frente e grita no ouvido de Carlos:
- Eh! Corinthias é campeão da libertadores!! É campeão invicto!
Maria sorri. Carlos se irrita e inicia a discussão entre os dois homens da sala. O primeiro falando sobre as características que induzem a acreditar que a libertadores foi paga pela Diretoria do time corinthiano, afinal esse time está dentro da máfia futebolística; o segundo defendendo categoricamente o valor político e libertário do timão. O homem sério não é afetado pela conversa, senta na cadeira de balanço.
Acima deles, um relógio ditando o horário. Daqui a pouco, começa o horário para o início das pegadinhas do Faustão. As crianças correm em círculo, muitos gritos misturados, um pequeno coro contra a torcida do timão também é formado, logo em seguida, acontece a reação, outro coro faz a apologia do campeão da Libertadores: “aqui tem um bando de loko!”. A confusão é armada, alguns afirmam que o único time que não pode marcar impedimentos é o Corinthians, o tiozinho grita: “tá bíblia, não existe impedimento pro Corinthias”. E o relógio pendurado na sala dita as horas. O homem sério não escuta as vozes da multidão, instaura a invenção do homem burguês, preso na sua personalidade e inventor da singularidade do seu pensamento próprio, independente da massa. Ele é um homem, o relógio não sente pena de homens, não sentirá pena de apenas um homem.
Maria foge da confusão e caminha em direção a cozinha, as mulheres da família preparam a feijoada de domingo. Os homens e algumas mulheres entendidas desses assuntos futebolísticos permanecem com a discussão, nunca acabada e interminável, sobre as maravilhas do Timão e os predicados sociais que a seita anti-corinthiana denota sobre os torcedores. No futebol, o melodrama é lei, tudo é motivo para criar vilões, loucos e mocinhos.  O homem sério grita. Ninguém escuta. As pessoas, que entram aos poucos na sala, estão preocupadas com o debate entre as prerrogativas futebolísticas, não existe verdade no futebol, existem paixões. Torcedores parecem críticos literários, a briga entre os pareceres da literatura clássica não é uma questão racional, tudo passa pelo gosto, é o embate técnico de paixões desenfreadas postas em campo de batalha. São heróis brigando por heróis. Ninguém quer ouvir um homem sério, todos querem ser ouvidos ao mesmo tempo.
O homem sério fica mais sério. A multidão fica ainda mais fervorosa. Toninho pega o relógio na parede e discursa apaixonadamente sobre as qualidades de ser um torcedor de coração, sem corinthias ele preferiria morrer a estar vivo. Os torcedores apoiam com urras, algumas vaias também são escutadas. O homem sério emudece, ficando cada vez mais sem palavras. Toninho e Carlos brigam para ter a posse do relógio, nenhum dos dois consegue, o relógio cai ao chão. Só a voz do homem sério ecoa na sala:
- em migalhas! (ele chora)
Maria e Anita, que preparavam a feijoada, entram na sala e nota o homem sério em prantos calorosos.
- o relógio da mamãe quebrou – diz Anita
- culpa é desses fanáticos!
Maria apanha as migalhas do relógio, Anita tenta acalmar os ânimos das pessoas presentes na sala de estar. As crianças correm em volta do homem sério, inicia timidamente a discussão sobre futebol, Anita ordena que os homens acalmem os ânimos. O homem sério não é ouvido, recolhe as migalhas e sobe para o quarto. Não existe mais relógio que dita a regra para homens que sabem o que querem quando enfrentam o mundo. 

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Crepúsculo Vermelho


(Breve reflexão sobre a Nova Ordem Mundial)

Nada se retoma, tudo é perdido
o tempo engole o mundo
encolhe
segundos

nada é como antes
mesmo a minha tristeza
amanhece mais triste
entristece o entardecer
muda

tudo se perde, ganha o presente
desconsolo primeiro de que o tempo
já é perdido

a nova ordem do mundo
fronte crepuscular
matando o ocidente
o novo sol poente é vermelho

o antigo crepúsculo que também era vermelho
cai em ruínas modernas, prédios terríveis
(mais feios que as ruínas no museu romano)

nada é igual, tudo se repete
o indivíduo se perde
o tempo engole multidões
nenhuma ideia nova de nação
Brasil, uma nova interrogação

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Um homem sem sobrenome


Olhar de seriedade. Às cinco e meia da tarde... Ele olha, ela não tem certeza. Eu como os restos de amendoim sobre a mesa, nenhuma leitura me fez ter ideia correta de uma possível felicidade nesse mundo (quem sabe ela existe em outros planetas?). Aí! – respiro fundo – como seria bom ter um amozinho pra acordar. Cinco e trinta um. O sol perde a cor; a sombra engrandece timidamente. O olhar de seriedade some, o casal na minha frente se entrega ao um beijo profundo. Paro de observá-los.
Meu olhar de vazio enxerga pouco. A fumaça do homem bigodudo inebria o ar, me recordo de uma definição de felicidade em um conto que eu li. Certamente, era de um amigo carioca. Ao fundo, uma música bem sugestiva: “rompi tratados, traí os ritos/ quebrei a lança/ lancei no espaço/ um grito, um desabafo” [Sangue Latino. Ney Matogrosso] . O meu vazio encontra um pouco de música para preencher, a vida sem música não tem a menor graça. Podem faltar pintores, peças de teatro, livros e poesias, mas a música! Não. 
Um homem se aproxima, eu cumprimento. Ele me pergunta se eu tenho fogo, acendo o cigarro dele com um isqueiro. Nós começamos a papear, eu não falo muito, deixo que o homem sem sobrenome faça o seu discurso.  O homem é professor de história, fala um pouco da época de 1964, outro pouco da traição de Lula, outro pouco nas mortes que viu quando os seus tios, militantes do PT, morreram para construir o partido que hoje está no poder. Um rapaz de dezoito anos se aproxima e diz:
- “agora, com gente jovem no PT, as coisas vão mudar. Eu vou ajudar a fazer um novo PT”.
-  “ Cala a boca! Lave essa boca pra falar no PT, você não sabe o que significa o PT, você não sabe o que é ver um amigo seu levar um tiro por causa desse maldito partido. Você não sabe nada”
- “ mas...”
- “ O PT me traiu, traiu os seus mortos quando subiu ao poder. Você não sabe nada.”
- “ dá pra mudar...”
- “ Cala boca! Lave essa boca pra falar desse partido, os nossos mortos estão sepultados pra história”
- “eu...”
-“ vai tomar no cú!, sai daqui!”
O rapaz saiu nervoso, batendo o pé nas cadeiras da frente. O homem jogou um copo plástico perto da cabeça dele; então o outro mais jovem, também nervoso, reagiu: “seu velho... vá pra puta que pariu! ”. O homem sem sobrenome olhou pra mim, algumas lágrimas adornavam os cílios e perguntou:
- “ você tem mais fogo?”
- “tenho”
Acendi. Ele tragou e saiu cambaleando até o banheiro. Eu não tinha o que falar; o que eu poderia falar? Fiquei silenciosa. O meu silêncio é trevas escondidas que desconheço, não sei exatamente o que pode resultar nesses demônios que não gostamos de cutucar, acostumam-se no escuro e sonham com a claridade mais fresca, serão violentos quando o sol iluminar os olhos acostumados com a sombra. O silêncio virou, a pouquíssimos segundos atrás, o meu melhor amigo.  

II
Depois, a noite ganhou corpo. As pessoas que se acostumaram viver nela, foram encontrando as posições nesse espaço, estavam preparadas para o encontro. Eu, acostumada com o não, me perguntei qual era a hora do sim? Uma moça sentou ao lado da minha mesa e falou:
- “ você sempre vem aqui”
- “sempre”
-“ fica aí olhando, está esperando alguém”
- “não, estou olhando o tempo”
-“ tá um calorzinho bom, né! Você não é daqui né!”
- “ sou sim”
- “ mas e esse sutaque?”
-“ é inventado. Me conte, você está com o seu namorado?”
- “ estou, ele tá no banheiro. Era um rapaz que tava conversando com você, pediu fogo e tudo, sabe?”
- “ Ah sei!..”
O homem sem sobrenome voltou com óculos escuros, começou a brigar com a moça. Ela pediu desculpas e também saiu nervosa. Sete e vinte e cinco. E hoje, já vi duas brigas com esse mesmo homem. Um olhar doce fita meus olhos, não respondo, ofereço outro cigarro.
- “acho que acabamos esse namoro, menina fresca! Você é bem calada. É melhor, quem fala demais, acaba falando besteira. Sabe como você consegue respeito, sabendo pouco e sendo burro. Mediano o suficiente para não se destacar em público! Pessoas originais demais é sempre um peso. Um peso pra sociedade. Um peso pros apáticos. Um peso pra ela própria. Eu sei que sou um peso, minhas palavras são rancorosas. “Todo poema tem os seus lobos”. Essa menina que eu tava comendo, não ia suportar ficar comigo mais um dia, é até melhor pra ela. O sonho dela é ser digna. Ela ainda não descobriu que a dignidade é a maior ilusão da sociedade, é um conto de fantasia, o demônio sempre pega na nossa mão”
- “você tá precisando de alguma coisa?” – eu fiz uma pergunta idiota, ele não estava precisando de nada. Era alguém querendo falar.
- “ eu sou um merda, você é um merda porque não fala o que sente e esses merdas controlam a nossa sociedade, porque merdas como você não quer abrir a boca. Quer ficar aí, calado, respirando a podridão dos outros”
Onze horas. Nós engolimos um pouco de saliva, eu ia dormir culpada e perdida. Se não tivesse uma insônia e uma vontade iminente de...Sei lá o quê.