Inquietude ou ânsia? Marta não sabia responder
o que ela sentia no fundo do coração. Olhava-se, percebia o corpo e não
conseguia enxergar a boca. Era uma ignorante, inclusive dela mesma, Marta só enxergava
os braços, as mãos e a ponta do nariz, não tinha a mínima ideia de como ela era
de corpo inteiro. Só se conhecia através do reflexo deturpado do espelho.
Marta tinha acabado de chegar em casa. Sentou-se
na cadeira. Os pratos sujos chamavam-na insistentemente. A cor da parede era
branca, na cozinha tinha uma mesa ao meio, dois quadros expressionistas
decoravam o ambiente, o apartamento era muito grande para morar sozinha. Um
pouco menos de um ano e um pouco mais de dois meses, Marta morava nesse lugar.
Ela vestia preto, usava botas e respirava um ar de cansaço.
Repentinamente. (Porque é sempre
repentinamente que as grandes coisas acontecem! Embora sejam muito banais...).
Repentinamente, ela levanta-se, toma uma xícara de café e fuma o último cigarro
do maço. Era o último cigarro da manhã, amargo e consolador, (Marta precisava
comprar outro maço de cigarros, quando fosse ao supermercado). Ela levanta-se e
vai em direção ao quarto, encara o relógio preto em cima da mobília, esse objeto
fascina a sua imaginação, pega-o, voltando para cozinha.
A cozinha estava silenciosa. Marta, antiga
atriz e atual recepcionista do consultório do Dr. Pedro, um dentista, não tinha
reparado no silêncio quando chegou em casa. Ela sentiu vontade de chorar, uma
angústia lhe apertava o peito. Olhou, finalmente, o relógio parado. Decidindo
criar uma situação nova que propiciasse o fim do tédio da segunda-feira. Nesse
joguinho, ela criou objetivos: 1º) observar o relógio parado; 2º) perceber o
som no silêncio. Anotaria as experiências com relógio preto dentro de um
caderninho marrom, rasgado e rabiscado.
Chorou, mas não sabia responder qual era o
motivo da tristeza. Marta, vivendo essa situação inventada, pensou de repente
que conseguia responder mais facilmente as perguntas profundas e filosóficas
dos grandes pensadores modernos do que responder as perguntas práticas do mundo
cotidiano e banal. A vida se repete. O que ela faria amanhã? E depois? Como
seria se não conseguisse o dinheiro para pagar o aluguel? E depois? Quando ia
comprar comida para encher a geladeira? E depois? Que horas ela ia tomar banho?
E depois? E se fosse despejada do apartamento? E depois. O cotidiano
saltava-lhe aos olhos. Marta precisava arranjar um emprego, lavar pratos e
arrumar o guarda-roupa. As roupas estavam todas desorganizadas.
Quanto ao relógio parado, o gravador era sua
única companhia. Marta registrava todos os seus depoimentos nele.
*8h15min: “Eu, Marta de Martini Santos, me dei o
objetivo de observar o maior tempo que eu puder esse relógio quebrado. Os
ponteiros estão imóveis. – ela gravava a
sua voz no gravador – Quero, nessa experiência, apreender a matéria do
silêncio. Seria uma espécie de laboratório teatral? Algo até muito idealista. O
silêncio é uma utopia? Vou anotar diariamente todas as minhas vivências com
esse objeto inanimado”
*8h17min: “Eu sentei nessa cadeira branca e comecei a
observar esse relógio. Notei que ele estava quebrado, os ponteiros apontavam
sempre para um mesmo horário: 7h55min50s; 7h55min50s; 7h55min50s. Parece que o
tempo parou, não escuto nenhum barulho, talvez o ritmo do meu sangue. O relógio
era preto, arredondado e morto. No meio do objeto, tinha uma palavra escrita em
cinza, caixa alta, QUARTZ, embaixo do número doze, outra palavra, itálico, Yin’s, escrita em preto”.
Renato. Marta pronunciou esse nome
mentalmente. Re-na-to. Era o nome do seu primeiro namorado, rapaz simpático,
cabeludo e muito quieto. Os olhos eram grandes, a boca muito fina. O sonho de
Renato era ser escritor. Tinha uma frase marcante na vida de Marta que ele
sempre repetia, era sobre os livros detalhistas: “ninguém quer saber quantos
grãos de trigo tem no saco, isso não é importante. A vida expressada! (quando
ele falava isso, abria muito a boca, Renato ficava entusiasmado demais), o
drama humano, não, não, não, o drama cotidiano da existência, é isso, as
pessoas querem algo que vai além do drama cotidiano da existência, a arte
ultrapassando a vida”.
*8h30min: “Drama humano?! Não, não, eu não saberia
pensar sobre isso, não sei nem direito o que um relógio quebrado, um mero
objeto inanimado, pode ter haver com o drama cotidiano da existência!...eeeeeh,
se tiver? Acho que isso é uma grande loucura, olhar esse relógio não vai me
fazer chegar onde eu quero...maaas, o que eu quero? O silêncio? O silêncio vai
por acaso preencher o meu vazio? O silêncio, que é o vazio, pode preencher
outros vazios?”
Toca o telefone: trim-trim-trim.
*8h31min: “atendo? Quem será que é a essa hora da
manhã? Ninguém normal acorda às oito horas para ligar. Eu não vou atender.
Estou muito ocupada com esse trabalho artístico. Vou me descobrir e perceber o
meu corpo. Sim: o corpo. O corpo é a resposta! Meu corpo sabe mais de mim,
guarda mais memórias e diz mais o que sinto do que eu mesmo”.
Marta tira o telefone e deixa-o fora do
gancho. Ninguém mais a incomoda. Só há o silêncio.
*8h42min: “Vou concentrar todas as minhas energias
nesse relógio parado (fechando os olhos) Não! Quero enxergar esse momento que
criei, senão eu vou perder ele para sempre. Na realidade, o relógio é parado,
não existe movimento nele... Droga! Me perdi, eu tinha mais coisa para falar
antes, mas esqueci....”
Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac: esse é o barulho
de outro relógio que existe na cozinha da Marta, ao lado do menor quadro de
pintura expressionista. Marta não diz nada, só o percebe.
*8h45min: “isso é o relógio? Ah!! Me esqueci que tinha
outros relógios na casa, mas, veja, que momento! É um relógio vivo gritando e
um relógio quebrado, mudo. Tudo em contraste, disforme, como a minha vida. Os
gregos definiam o movimento como tudo aquilo que transformasse a realidade, mesmo
algo parado pode significar movimento, acaso atingir a transformação do real.
Acho que eu estou me modificando, não sei o que isso significa...”
Tudo é transformação. O tempo sobrevoa nas
costas de Marta, é inevitável, todos os dias ela está próximo da morte,
envelhecendo e entristecendo. Ela não consegue tocar o silêncio, porque não
sabe se isso também é uma invenção dos homens para atingir a felicidade. O
silêncio pleno pode ser uma utopia. As mãos alisam a pele e os cabelos,
caminham até o útero e Marta relembra o seu sexo.
*8h50min: “ter um útero é diferente, é mesmo muito
diferente do que não ter...”
*8h51min: “porque a arte nos inferniza, porque quando
você toma a decisão de ser artista, não escapa mais, porque eu tô com fome,
porque eu preciso comprar anticoncepcional, porque eu preciso pagar o aluguel,
porque não falo mais com os meus pais, porque não tenho dinheiro para pagar as
contas de água e luz, porque Rodrigo transou comigo e não me ligou mais, porque
nunca sei...”
Ela relembrou, repentinamente, as duas vezes
que tentou largar o teatro. Sentiu como um objeto perdido, mas nunca achado.
Não soube se exprimir para ela mesma. Parou, respirou e quase gritou. Sufocando
o grito, sussurrou.
8h55min:
“e abandonei, mas não resisti por
muito tempo, eu acabei voltando pro teatro dois meses depois. O que há nessa
coisa que é tão difícil de sair e tão fácil de desamar? Atuar... No começo é
lindo, depois fica uma merda. Um dia a gente aprende que o prazer é sempre
complicado, exige paciência e personalidade, um dia a gente aprende que o amor
é inundado de angústias, a gente aprende que o medo é natural, a gente aprende
que a raiva é o sentimento que implica posicionamento. Acho que um dia a gente
aprende”
Marta pensando, um relógio inanimado e outro
tiquetaqueando. Na maioria das vezes, o ser humano perde a cabeça quando pensa
demais e se esquece de viver o presente. Um Instante parecido com o silêncio, difícil de agarrar com as mãos, essa tal efemeridade do aqui e agora. O presente
se vai, se perde.
*8h57min: “ por um momento não consegui perceber nenhum
som, me esqueci do relógio e não senti nada com meu corpo. Droga! Me perdi de
novo, esqueci completamente da coisa, de tudo, do que eu queria realmente...”
*8h58min: “...será que sabemos o que queremos
realmente? Ah saco! Eu de novo me indagando e esquecendo da vivência... aaaaah
vida!, o...”
*8h59min: “... instante se foi, indo, indo e eu nem
peguei...”
*8h59min59s:
“...ou...”
*9h: “...eu que fui?”