quinta-feira, 7 de junho de 2012

Anotações do relógio parado: os devaneios de um corpo qualquer


Inquietude ou ânsia? Marta não sabia responder o que ela sentia no fundo do coração. Olhava-se, percebia o corpo e não conseguia enxergar a boca. Era uma ignorante, inclusive dela mesma, Marta só enxergava os braços, as mãos e a ponta do nariz, não tinha a mínima ideia de como ela era de corpo inteiro. Só se conhecia através do reflexo deturpado do espelho.
Marta tinha acabado de chegar em casa. Sentou-se na cadeira. Os pratos sujos chamavam-na insistentemente. A cor da parede era branca, na cozinha tinha uma mesa ao meio, dois quadros expressionistas decoravam o ambiente, o apartamento era muito grande para morar sozinha. Um pouco menos de um ano e um pouco mais de dois meses, Marta morava nesse lugar. Ela vestia preto, usava botas e respirava um ar de cansaço.
Repentinamente. (Porque é sempre repentinamente que as grandes coisas acontecem! Embora sejam muito banais...). Repentinamente, ela levanta-se, toma uma xícara de café e fuma o último cigarro do maço. Era o último cigarro da manhã, amargo e consolador, (Marta precisava comprar outro maço de cigarros, quando fosse ao supermercado). Ela levanta-se e vai em direção ao quarto, encara o relógio preto em cima da mobília, esse objeto fascina a sua imaginação, pega-o, voltando para cozinha.
A cozinha estava silenciosa. Marta, antiga atriz e atual recepcionista do consultório do Dr. Pedro, um dentista, não tinha reparado no silêncio quando chegou em casa. Ela sentiu vontade de chorar, uma angústia lhe apertava o peito. Olhou, finalmente, o relógio parado. Decidindo criar uma situação nova que propiciasse o fim do tédio da segunda-feira. Nesse joguinho, ela criou objetivos: 1º) observar o relógio parado; 2º) perceber o som no silêncio. Anotaria as experiências com relógio preto dentro de um caderninho marrom, rasgado e rabiscado.
Chorou, mas não sabia responder qual era o motivo da tristeza. Marta, vivendo essa situação inventada, pensou de repente que conseguia responder mais facilmente as perguntas profundas e filosóficas dos grandes pensadores modernos do que responder as perguntas práticas do mundo cotidiano e banal. A vida se repete. O que ela faria amanhã? E depois? Como seria se não conseguisse o dinheiro para pagar o aluguel? E depois? Quando ia comprar comida para encher a geladeira? E depois? Que horas ela ia tomar banho? E depois? E se fosse despejada do apartamento? E depois. O cotidiano saltava-lhe aos olhos. Marta precisava arranjar um emprego, lavar pratos e arrumar o guarda-roupa. As roupas estavam todas desorganizadas.
Quanto ao relógio parado, o gravador era sua única companhia. Marta registrava todos os seus depoimentos nele.
*8h15min: “Eu, Marta de Martini Santos, me dei o objetivo de observar o maior tempo que eu puder esse relógio quebrado. Os ponteiros estão imóveis.  – ela gravava a sua voz no gravador – Quero, nessa experiência, apreender a matéria do silêncio. Seria uma espécie de laboratório teatral? Algo até muito idealista. O silêncio é uma utopia? Vou anotar diariamente todas as minhas vivências com esse objeto inanimado
*8h17min: “Eu sentei nessa cadeira branca e comecei a observar esse relógio. Notei que ele estava quebrado, os ponteiros apontavam sempre para um mesmo horário: 7h55min50s; 7h55min50s; 7h55min50s. Parece que o tempo parou, não escuto nenhum barulho, talvez o ritmo do meu sangue. O relógio era preto, arredondado e morto. No meio do objeto, tinha uma palavra escrita em cinza, caixa alta, QUARTZ, embaixo do número doze, outra palavra, itálico, Yin’s, escrita em preto”.
Renato. Marta pronunciou esse nome mentalmente. Re-na-to. Era o nome do seu primeiro namorado, rapaz simpático, cabeludo e muito quieto. Os olhos eram grandes, a boca muito fina. O sonho de Renato era ser escritor. Tinha uma frase marcante na vida de Marta que ele sempre repetia, era sobre os livros detalhistas: “ninguém quer saber quantos grãos de trigo tem no saco, isso não é importante. A vida expressada! (quando ele falava isso, abria muito a boca, Renato ficava entusiasmado demais), o drama humano, não, não, não, o drama cotidiano da existência, é isso, as pessoas querem algo que vai além do drama cotidiano da existência, a arte ultrapassando a vida”.
*8h30min: “Drama humano?! Não, não, eu não saberia pensar sobre isso, não sei nem direito o que um relógio quebrado, um mero objeto inanimado, pode ter haver com o drama cotidiano da existência!...eeeeeh, se tiver? Acho que isso é uma grande loucura, olhar esse relógio não vai me fazer chegar onde eu quero...maaas, o que eu quero? O silêncio? O silêncio vai por acaso preencher o meu vazio? O silêncio, que é o vazio, pode preencher outros vazios?”
Toca o telefone: trim-trim-trim.
*8h31min: “atendo? Quem será que é a essa hora da manhã? Ninguém normal acorda às oito horas para ligar. Eu não vou atender. Estou muito ocupada com esse trabalho artístico. Vou me descobrir e perceber o meu corpo. Sim: o corpo. O corpo é a resposta! Meu corpo sabe mais de mim, guarda mais memórias e diz mais o que sinto do que eu mesmo”. 
Marta tira o telefone e deixa-o fora do gancho. Ninguém mais a incomoda. Só há o silêncio.
*8h42min: “Vou concentrar todas as minhas energias nesse relógio parado (fechando os olhos) Não! Quero enxergar esse momento que criei, senão eu vou perder ele para sempre. Na realidade, o relógio é parado, não existe movimento nele... Droga! Me perdi, eu tinha mais coisa para falar antes, mas esqueci....”
Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac: esse é o barulho de outro relógio que existe na cozinha da Marta, ao lado do menor quadro de pintura expressionista. Marta não diz nada, só o percebe.
*8h45min: “isso é o relógio? Ah!! Me esqueci que tinha outros relógios na casa, mas, veja, que momento! É um relógio vivo gritando e um relógio quebrado, mudo. Tudo em contraste, disforme, como a minha vida. Os gregos definiam o movimento como tudo aquilo que transformasse a realidade, mesmo algo parado pode significar movimento, acaso atingir a transformação do real. Acho que eu estou me modificando, não sei o que isso significa...”
Tudo é transformação. O tempo sobrevoa nas costas de Marta, é inevitável, todos os dias ela está próximo da morte, envelhecendo e entristecendo. Ela não consegue tocar o silêncio, porque não sabe se isso também é uma invenção dos homens para atingir a felicidade. O silêncio pleno pode ser uma utopia. As mãos alisam a pele e os cabelos, caminham até o útero e Marta relembra o seu sexo.
*8h50min: “ter um útero é diferente, é mesmo muito diferente do que não ter...”
*8h51min: “porque a arte nos inferniza, porque quando você toma a decisão de ser artista, não escapa mais, porque eu tô com fome, porque eu preciso comprar anticoncepcional, porque eu preciso pagar o aluguel, porque não falo mais com os meus pais, porque não tenho dinheiro para pagar as contas de água e luz, porque Rodrigo transou comigo e não me ligou mais, porque nunca sei...”
Ela relembrou, repentinamente, as duas vezes que tentou largar o teatro. Sentiu como um objeto perdido, mas nunca achado. Não soube se exprimir para ela mesma. Parou, respirou e quase gritou. Sufocando o grito, sussurrou.
8h55min: “e abandonei, mas não resisti por muito tempo, eu acabei voltando pro teatro dois meses depois. O que há nessa coisa que é tão difícil de sair e tão fácil de desamar? Atuar... No começo é lindo, depois fica uma merda. Um dia a gente aprende que o prazer é sempre complicado, exige paciência e personalidade, um dia a gente aprende que o amor é inundado de angústias, a gente aprende que o medo é natural, a gente aprende que a raiva é o sentimento que implica posicionamento. Acho que um dia a gente aprende”
Marta pensando, um relógio inanimado e outro tiquetaqueando. Na maioria das vezes, o ser humano perde a cabeça quando pensa demais e se esquece de viver o presente. Um Instante parecido com o silêncio, difícil de agarrar com as mãos, essa tal efemeridade do aqui e agora. O presente se vai, se perde.
*8h57min: “ por um momento não consegui perceber nenhum som, me esqueci do relógio e não senti nada com meu corpo. Droga! Me perdi de novo, esqueci completamente da coisa, de tudo, do que eu queria realmente...”
*8h58min: “...será que sabemos o que queremos realmente? Ah saco! Eu de novo me indagando e esquecendo da vivência... aaaaah vida!, o...”
*8h59min: “... instante se foi, indo, indo e eu nem peguei...”
*8h59min59s: “...ou...”
*9h: “...eu que fui?” 

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