sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Um homem sem sobrenome


Olhar de seriedade. Às cinco e meia da tarde... Ele olha, ela não tem certeza. Eu como os restos de amendoim sobre a mesa, nenhuma leitura me fez ter ideia correta de uma possível felicidade nesse mundo (quem sabe ela existe em outros planetas?). Aí! – respiro fundo – como seria bom ter um amozinho pra acordar. Cinco e trinta um. O sol perde a cor; a sombra engrandece timidamente. O olhar de seriedade some, o casal na minha frente se entrega ao um beijo profundo. Paro de observá-los.
Meu olhar de vazio enxerga pouco. A fumaça do homem bigodudo inebria o ar, me recordo de uma definição de felicidade em um conto que eu li. Certamente, era de um amigo carioca. Ao fundo, uma música bem sugestiva: “rompi tratados, traí os ritos/ quebrei a lança/ lancei no espaço/ um grito, um desabafo” [Sangue Latino. Ney Matogrosso] . O meu vazio encontra um pouco de música para preencher, a vida sem música não tem a menor graça. Podem faltar pintores, peças de teatro, livros e poesias, mas a música! Não. 
Um homem se aproxima, eu cumprimento. Ele me pergunta se eu tenho fogo, acendo o cigarro dele com um isqueiro. Nós começamos a papear, eu não falo muito, deixo que o homem sem sobrenome faça o seu discurso.  O homem é professor de história, fala um pouco da época de 1964, outro pouco da traição de Lula, outro pouco nas mortes que viu quando os seus tios, militantes do PT, morreram para construir o partido que hoje está no poder. Um rapaz de dezoito anos se aproxima e diz:
- “agora, com gente jovem no PT, as coisas vão mudar. Eu vou ajudar a fazer um novo PT”.
-  “ Cala a boca! Lave essa boca pra falar no PT, você não sabe o que significa o PT, você não sabe o que é ver um amigo seu levar um tiro por causa desse maldito partido. Você não sabe nada”
- “ mas...”
- “ O PT me traiu, traiu os seus mortos quando subiu ao poder. Você não sabe nada.”
- “ dá pra mudar...”
- “ Cala boca! Lave essa boca pra falar desse partido, os nossos mortos estão sepultados pra história”
- “eu...”
-“ vai tomar no cú!, sai daqui!”
O rapaz saiu nervoso, batendo o pé nas cadeiras da frente. O homem jogou um copo plástico perto da cabeça dele; então o outro mais jovem, também nervoso, reagiu: “seu velho... vá pra puta que pariu! ”. O homem sem sobrenome olhou pra mim, algumas lágrimas adornavam os cílios e perguntou:
- “ você tem mais fogo?”
- “tenho”
Acendi. Ele tragou e saiu cambaleando até o banheiro. Eu não tinha o que falar; o que eu poderia falar? Fiquei silenciosa. O meu silêncio é trevas escondidas que desconheço, não sei exatamente o que pode resultar nesses demônios que não gostamos de cutucar, acostumam-se no escuro e sonham com a claridade mais fresca, serão violentos quando o sol iluminar os olhos acostumados com a sombra. O silêncio virou, a pouquíssimos segundos atrás, o meu melhor amigo.  

II
Depois, a noite ganhou corpo. As pessoas que se acostumaram viver nela, foram encontrando as posições nesse espaço, estavam preparadas para o encontro. Eu, acostumada com o não, me perguntei qual era a hora do sim? Uma moça sentou ao lado da minha mesa e falou:
- “ você sempre vem aqui”
- “sempre”
-“ fica aí olhando, está esperando alguém”
- “não, estou olhando o tempo”
-“ tá um calorzinho bom, né! Você não é daqui né!”
- “ sou sim”
- “ mas e esse sutaque?”
-“ é inventado. Me conte, você está com o seu namorado?”
- “ estou, ele tá no banheiro. Era um rapaz que tava conversando com você, pediu fogo e tudo, sabe?”
- “ Ah sei!..”
O homem sem sobrenome voltou com óculos escuros, começou a brigar com a moça. Ela pediu desculpas e também saiu nervosa. Sete e vinte e cinco. E hoje, já vi duas brigas com esse mesmo homem. Um olhar doce fita meus olhos, não respondo, ofereço outro cigarro.
- “acho que acabamos esse namoro, menina fresca! Você é bem calada. É melhor, quem fala demais, acaba falando besteira. Sabe como você consegue respeito, sabendo pouco e sendo burro. Mediano o suficiente para não se destacar em público! Pessoas originais demais é sempre um peso. Um peso pra sociedade. Um peso pros apáticos. Um peso pra ela própria. Eu sei que sou um peso, minhas palavras são rancorosas. “Todo poema tem os seus lobos”. Essa menina que eu tava comendo, não ia suportar ficar comigo mais um dia, é até melhor pra ela. O sonho dela é ser digna. Ela ainda não descobriu que a dignidade é a maior ilusão da sociedade, é um conto de fantasia, o demônio sempre pega na nossa mão”
- “você tá precisando de alguma coisa?” – eu fiz uma pergunta idiota, ele não estava precisando de nada. Era alguém querendo falar.
- “ eu sou um merda, você é um merda porque não fala o que sente e esses merdas controlam a nossa sociedade, porque merdas como você não quer abrir a boca. Quer ficar aí, calado, respirando a podridão dos outros”
Onze horas. Nós engolimos um pouco de saliva, eu ia dormir culpada e perdida. Se não tivesse uma insônia e uma vontade iminente de...Sei lá o quê. 

Um comentário:

  1. ...
    "Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
    nem vossa ira. Tenho oito anos
    saí para nadar naquele açude atrás dos morros
    e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
    Parem de jogar cadáveres na minha porta
    na minha mesa
    na minha cama
    dificultando
    que alcance o corpo da mulher que amo."
    ...

    (Affonso Romano de Sant'Anna)

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