segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Sobre o mundo de ruínas e a pobreza de experiências

Esse texto é de 1933, após a crise econômica de 1929 e da esperança próxima da Segunda Guerra Mundial. No primeiro momento, existe uma ilustração de uma história entre pai e filhos. O pai conta aos filhos que, ao cavar a terra, eles encontrariam um tesouro perdido. Os filhos cavaram e não encontraram nenhum tesouro. Entretanto, com a chegada do Outono, as vinhas produziam mais que em qualquer região. O pai queria comunicar uma experiência aos filhos: a felicidade não está no ouro, está no trabalho. A experiência era comunicada de pai para filho, atravessando gerações; ou era feita a comunicação de uma maneira benevolente, ou, o contrário, a comunicação era ameaçadora. BENJAMIN, 1994, p. 114, questiona: “Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas [...] Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?”.
O que aconteceu que as experiências ficaram incomunicáveis? As experiências ficaram pobres. A geração que viveu e experimentou as experiências terríveis da história entre 1914 e 1918. Estavam incomunicáveis. Muitos combatentes voltaram do campo de batalha ainda mais silenciosos. Ficaram mais pobres de experiências, e não mais ricos. Nos dez anos seguintes, o mercado literário ficou infestado de livros sobre a experiência da guerra; nos livros não continham experiências orais, não havia autenticidade nos relatos. “O fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” [BENJAMIN,1994,p.115].
O desenvolvimento da técnica sobrepunha-se ao homem. A aceleração e o excesso de novas concepções de mundo e ideias não modificaram o homem e também as relações sociais (por exemplo, a gnose, o vegetarianismo, o espiritualismo e a renovação da astrologia e a ioga), na realidade, - passando a expressão para uma construção coloquial, - era como “tapar o sol com a peneira”. Mascaravam as reais necessidades da sociedade, escondendo a miséria, enquanto os burgueses festejavam carnavais. A experiência era separada da vida dos homens, aos poucos, perdia-se a capacidade de contar histórias e dar conselhos para novas gerações. A esperança mais próxima, baseando a vida nisso, era de um Renascimento de ruínas. O rosto, desenhado por essa modernidade, era parecido com um mendigo medieval, bem calado, mudo. BENJAMIN (1994) reafirma centenas de vezes que a experiência e a arte de contar histórias foram subtraídas da vida dos homens, sendo uma forma de honradez confessar a nossa pobreza. As experiências pobres não são mais individuais, porque atingem toda a humanidade. Surge, então, um novo conceito de barbárie.
“Barbárie (do gr. Barbaros: estrangeiro, não civilizado): Para os gregos e os romanos, estado de quem é estrangeiro e não civilizado. Posteriormente, para os cristãos, estado dos não evangelizados. Daí a ideia errônea de uma ‘civilização ocidental’ superior e diferente da barbárie (outras civilizações): ‘Barbárie é o poder sem liberdade nem lei’ [KANT]. Toda civilização pratica atos de barbárie, constituindo verdadeiramente atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana: crime nazista, torturas etc. Neste sentido, toda violência pode ser considerada um ato de barbárie” (conceito retirado no Dicionário Básico de Filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, ano 2006. Rio de Janeiro: Editora Zahar).
Walter Benjamin (1994) opõe-se a ideia de experiência tradicional. O homem é criador da história, podendo criar outras experiências, inclusive na barbárie. O bárbaro, segundo esse conceito positivo, é impelido a contentar-se com pouco, a construir com poucos meios e a começar de novo. “Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tabula rasa. Queria uma prancheta foram construtores. A essa estirpe pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza – penso, logo existo – e dela partiu” [BENJAMIN, 1994, p.116]. Uma das características dessas cabeças é a desilusão radical com o século atual e ao mesmo tempo uma total fidelidade a ele. “Pouco importa se é o poeta Bert Brecht afirmando que o comunismo não é a repartição mais justa da riqueza, mas da pobreza” [BENJAMIN,1994,p.116]. Assim, tem-se a necessidade emergente de criar uma nova linguagem e um novo homem. Algo que pertença das ruínas e faça delas também criação, quer seja o uso de uma linguagem aludindo nomes temporais como Outubro indicado uma alusão à Revolução Russa, quer seja uma confissão aos outros todas as experiências miseráveis que viveram na juventude. Mas a militância vem na criação de um homem diferente do herói aristotélico e aristocrático, ou mesmo, do homem burguês e capitalista que criou toda a barbárie (o conceito negativo do mesmo) e tenacidade com relação ao mundo. Portanto, para a possibilidade do novo emergir, a radicalização da barbárie se faz necessária, já que existem ruínas por toda parte. O homem fará parte delas e criará a partir disso. Todos serão estrangeiros de sua própria humanidade, são todos bárbaros.
Assim, será feita uma cultura de vidro. O vidro é um material inimigo do mistério e da propriedade. “Se entrarmos num quarto burguês dos anos 1880, apesar de todo o ‘aconchego’ que ele irradia, talvez a impressão mais forte que ele produz se exprima na frase: ‘ Não tens nada a fazer aqui’”(BENJAMIN, 1994, p.117). A casa de vidro não tem espaço para intimidade e não pode haver vestígio nenhum de uma aura humana por ali. Mesmo quando alguém quebre um copo, a emoção é fingida e, ao mesmo tempo, o medo de deixar vestígios de humanos ali é iminente. Se tiver – o autor W. Benjamin(1994) usa essa frase de Brecht - : “apaguem os rastros!”. Subtraí essa possibilidade de vida na terra. É preciso criar espaços onde não é possível deixar vestígios.
BENJAMIN(1994) esclarece que os homens para ser fiel ao seu século, deve confessar que vive uma experiência de ruínas. Isso não significa que aspiram a viver novas experiências, aspiram a vivenciar e ostentar abertamente suas misérias intelectuais, morais e materiais. Muitas vezes, pode-se afirmar o oposto: “eles ‘devoraram’ tudo, a ‘cultura’ e os ‘homens, e ficaram saciados e exaustos” (idem, p.117). Tudo porque não concentraram a invenção num plano simples e não quiseram investir no pouco e nessas ruínas. O sonho ficou doente, pois a sociedade investe todas as suas energias e forças em cima dele, compensando assim o desânimo no final do dia. A humanidade sonha viver numa existência que zomba todo o progresso tecnológico e também produz milagres, ultrapassando a própria natureza. “A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo [...] Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisamento, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis cotidianos, das árvores, nuvens e lagos” (idem, p.118).
Portanto, segundo o autor, para criar e inventar, os homens precisam ser solidários com aqueles que renunciaram tudo. Construir edifícios de novo a partir das sobras de grandes impérios e com poucos meios. BENJAMIN (1994) relata sobre a crise econômica de 1929 próxima da porta, perto dela, a única e tenebrosa esperança, a Segunda Guerra mundial. A humanidade prepara-se para sobreviver a cultura. (E pensar que, diante a esse fatos, muitos que completam duas décadas de existência hoje e preparam-se para vivenciar uma vida de adulto, são frutos dessas relações sociais. Somos filhos dos sobreviventes da cultura, também pertencemos a ruínas). 



Referência Bibliográfica:
BENJAMIN, Walter. “Experiência e Pobreza” in: Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política; Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gragnebin. 7 edição. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 114-119. 

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