sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O estranho observador

O espelho conta sobre as suas observações
do Augusto; este último, há trinta e sete anos,
é o dono da casa que o espelho reside.
Augusto é um escritor frustrado e vive sozinho,
não tem filhos nem esposa,
apenas sobrinhos.


Eu sou o espelho. Fico pendurado numa parede verde na casa de um senhor bem velhinho chamado Augusto. Ele é um senhor sozinho de 57 anos, comprou essa casa quando estava na aurora dos vinte anos (eu tenho a pequena impressão que Augusto gosta da cor verde, porque a casa inteirinha é pintada assim). Morador dessa casa há trinta sete anos, Augusto nunca se casara ou tivera filhos, não lembro-me de nenhuma visitante feminina que roubou o meu olhar na minha pele refletida. Também pudera! Augusto era um moço estúpido, desinteressante e feio. Atualmente tornou-se um velho beberrão e grosseiro. Lembro-me desses detalhes e dito-lhes com precisão desde que eu percebi a minha existência nessa casa mono-colorida, - inteiramente verde.

Por todos cantos dessa casa, existem livros e cadeiras espalhadas. Augusto nunca pareceu-me muito organizado; os seus cadernos, - porque ele é um escritor, - têm cheiro de uísque, sujeira de cafeína e manchas do Malboro. Ele fuma muito. E também bebe bastante.

Uma vez houve uma ocasião da qual ele, bêbado, quebrou os meus vidros (foi muita falta de delicadeza!), jogando em mim uma cadeira. Os meus restos de cacos de vidro nervosamente atacaram, com um corte incisivo e sangrento, as suas mãos; essa cicatriz que existe na palma da mão direita fora fruto do nosso conflito naquela noite. Augusto foi muito indelicado (Poxa! Ele falou para mim que eu era invejoso, justo eu) e disse-me que eu o imito. Entretanto, não sou eu o imitador, sou naturalmente o imitante. Augusto é que repete tudo que existe no meu campo de visão restrito a um foco delimitado pelo espaço; tudo que eu vejo e enxergo só depende de Augusto, pois é ele que prepara o pensamento, fala o que eu não consigo oralizar e possui liberdade de experimentar qualquer ação. Infelizmente, essa liberdade humana eu não tenho. Mas, por falta de alguém para conversar, esse velho beberão joga-lhe a raiva em mim, fica irritado, porque não consegue ser um escritor original e destrói todos os meus cacos por causa de sua frustração literária.

Esses seres chamados Homens são realmente estranhos, sempre necessitam culpabilizar algum outro pelos seus próprios atos de incompetência. Por acaso, quebrar-nos vai mudar a condição de incompetência literária deles? Mesmo nós, que somos da espécie dos espelhos, acabamos quebrados por causa de ações odiosas dos Homens, ora nem fizemos nada para eles. Os cacos, tão bonitos, quebrados e espalhados pelo chão, - nossa como dói! - Jogam-nos (nós, os espelhos, que só observamos objetos e ações) com bastante facilidade as cadeiras, copos e outros instrumentos bélicos, ainda assim, os homens não aprendem, eles não pensam nas consequências dessa atitude e na dor que todos vão sentir com os cacos espalhados pelo chão. Nessas ocasiões só é possível uma troca justa: um espelho quebrado e uma mão sangrenta. Latejante de dor.

Quebrar as espécies alheias é mais fácil do que encarar os problemas. Augusto é incapaz de escrever duas linhas de prosa. Ontem, ele leu alguns versos de Baudelaire em voz alta na Língua Francesa. Tão bonitinhos, tão bonitinhos são os versos: “enivres-vous; enivres-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise". Enquanto as horas passavam, esse velho beberão embriagava-se de uísque e ria alto com a poesia gritando-a: Enivres-vous! Enivres-vous! Não sabia o que significavam essas palavras francesas, os sons que a boca de Augusto produziam eram bonitos e, para mim, os sons já bastavam. O velho beberão tornava-se uma criança brincalhona quando lia as prosas poéticas de Baudelaire, inspirado e bêbado, soltava um riso de lágrima por não conseguir imitar os poetas malditos e esplêndidos. Nenhuma linha de prosa. Nada. Folha vazia.

O escritor chorou tanto porque não conseguia escrever, ficou sentado horas, olhando aquele vazio. Depois, ele virou-se para mim e encarou-me. Pela primeira vez, Augusto se identificou comigo... Até sorriu! Me lembro de seu sorriso triste, vindo na minha direção e as lágrimas misturadas com saliva e uísque. O velho beberão sem camisa, gordo, pêlos brancos no peito, plácido, caminhando até mim e sorrindo. Eu também sorri de volta, já criando uma simpatia, até que ele ficou próximo demais do meu corpo. Nós ficamos muito tempo nos encarando, então, esse velho pegou um copo e jogou em mim (sem dó e nem piedade!). Fiquei nervoso, mas não me quebrei por causa do copo. Não bastando, esse beberão jogou-me uma cadeira; mas, dessa vez, não pude controlar, quebrei-me a parte direita que é o braço dele. O rosto do Augusto estava quase rachado, venho, então, uma outra cadeira e quebrei a parte esquerda que é outro braço dele. O rosto estava inteiramente arrebentado. Por último, Augusto jogou-me uma garrafa de uísque, foi quando eu resolvi quebrar-me inteiramente  para que esse velho pagasse, com o seu sangue, o estrago do meu corpo.

No entanto, ele culpa a mim pela incompetência literária dele e chamou a mim de invejoso! Invejoso. Antes disso, eu até gostava dele, mas agora eu o detesto; demonstro o rosto desse velho beberão deformado e rachado. Augusto nunca arrumara essa casa, escolheu deixá-la para as moscas e ratos. O verde das paredes é a cor bonita que hoje existe no meu reflexo e demonstro com carinho, pois  Augusto atualmente tornara-se apenas uma imagem deformada.


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