“Os médicos
estão fazendo a autópsia
Dos desiludidos
que se mataram.
Que grandes
corações eles possuíam.
Vísceras
imensas, tripas sentimentais
E um estômago
cheio de poesia...
[...]
Única fortuna,
os seus dentes de ouro
Não servirão de
lastro financeiro
E cobertos de
terra perderão o brilho
Enquanto as
amadas dançarão um samba
Bravo, violento,
sobre a tumba deles.
[Necrológio dos
desiludidos do amor, Carlos Drummond de Andrade]
I
Eu
me perdi aos vinte e dois anos. Minha melhor amiga tinha ido embora para China
– nunca quis saber onde ela ficou – e, desde então, eu fui me afastando aos
poucos das pessoas; no primeiro momento foi a minha família no Brasil; no
segundo, o meu trabalho. As pessoas que tinham alguma consideração por mim e
estavam por perto, achavam que eu tinha algum talento para música e passei a
acreditar nisso. Ao notar a minha
solidão, eu também fui perdendo a vontade e a competência de criar melodias
novas.
Na
realidade, eu era um sortudo. Meus amigos gostavam muito de mim e a minha
música era prazerosa, porque era acima de tudo uma brincadeira. Sonhava ser um
Chopin, algo comparável aos grandes compositores alemães e, quanto mais, eu
acreditava em mim, criava menos ou fazia peças musicais detestáveis. Então...
Ficava contaminado pela preguiça, a barba ficara enorme, o cabelo também. Já não
criava.
Naquela
tarde, eu tinha voltado do supermercado e comprado uma garrafa de uísque. Acho
que estava deprimido. Bela combinação! Triste e sozinho (já poderia ser
considerado um personagem ridículo da literatura romântica). Um pianista de
vinte e dois anos sem criatividade, sem amigos, sem amor, realmente muito
pálido, contaminado pela tristeza e sozinho. Precisava tomar um banho.
O
piano olhava-me elegantemente. A arrogância desse objeto cobria a sala imensa
de olhares impiedosos e postura indiferente. Será que o poeta morreu por causa
da arrogância de seus versos? Eu estou perdido, finalmente conclui desolado.
II
Eu
queria falar de arrogância. Dizem que o instrumento é a extensão do corpo de um
músico; se o piano é tão soberbo e eu sou tão elegante; a música nos fizera
arrogante. O meu talento e a beleza eterna das melodias fizeram com que eu
tivesse esquecido as angústias humanas, parecendo que eu era mais do que os
homens normais... (e eu era!). Quando eu estava no palco, eu era como um
semideus e Zeus era o meu piano, éramos indestrutíveis. Possivelmente, essa
sensação estava consumindo com o pouco da minha humanidade e fazendo com que eu acreditasse
na impossibilidade de viver outra vez infeliz.
A
Maria casou com meu melhor amigo, um moço realmente distinto chamado João,
abandonou as nossas confidências noturnas. Ao sentir no peito o peso da solidão,
acordou a impressão da infelicidade e fiquei com vontade de chorar, pois agora
era eu e o meu piano.
Na
realidade, era eu mesmo. O piano era a extensão da minha tristeza. Tinha um
tempo que eu achava que só bastava a mim. Mesmo quando aconteceram os grandes
desastres no Japão e consegui sobreviver sem piano ou partituras novas.
Sobrando apenas o meu corpo, cheguei à conclusão que eu era mais um sobrevivente.
A solidão tinha salvado a minha vida. Depois de dez anos ou vinte, (não recordo
direito), o reencontro com esse piano elegante, em frente dos meus olhos hoje,
fora algo quase místico, me senti tão inteiro e pleno. E quase esqueci a
necessidade de estar ao lado de alguém. Essa sensação divina de criar música iludia
a minha solidão.
Deslumbrado
com essa realização artística, não percebi a presença de Maria. Arrumando
silenciosamente as minhas meias, ouvindo as melodias interrompidas, acordando os
meus sonos conturbados e, delicadamente, preparando o meu café e o meu pão pela
manhã. Esqueci que ela existia, não sei nem quando o João e a Maria começaram a
se envolver.
III
Era
uma noite qualquer de aplausos e sucesso. Foi quando percebi. Ela e ele, com as
mãos dadas, namorando e gargalhando. Aproximei deles e pedi um pouco de água.
Fiquei um tanto surpreso, precisava de algo para molhar o meu coração, o uísque
afogaria as minhas mágoas depois, mas não naquele momento. Queria demonstrar
tranquilidade, queria parecer o mesmo de antes. Soberbo, alegre e conversador.
Mas,
nem cumprimentar, eu consegui e fiquei olhando, não me recordo por quanto tempo.
Ela que se aproximou de mim exageradamente feliz, fiquei enojado com tanta
alegria:
-
música linda! – para o João – né, meu amor? Pedro não toca canções lindas?
-
também, ele não larga o piano, - dando tapinhas nas costas do pianista, - que
até esquece a solidão
Balancei
a cabeça afirmando.
-
Vocês estão juntos? – disse fingindo tranquilidade
-
ele me pediu em casamento na sua frente, não lembra? – Maria sorria, - você
estava tentando achar a tal melodia perfeita e eu arrumava as suas meias. Foi
quando o João entrou, pediu licença, falou que me amava e queria ficar comigo
para sempre. Não lembra, Pedro? O João até pediu permissão pra você
-
e você disse que podia – João beijou a boca de Maria. Eu sorri.
Foi
então que fiz para mim as perguntas de agora. Maria casou em um domingo, depois
foi embora para China com João. Quanto tempo eu fiquei distraído sem perceber a
presença deles? Não tinha recordado o evento do pedido de casamento, se eu
tivesse percebido será que eu reagiria de outro modo? Ah! O piano!... Antes
você me bastava, agora não tem ninguém arrumando as minhas meias em silêncio.
Maria silenciava a minha ausência, eu cobria o ambiente com música. Em algum
momento, vivendo isso, tivemos alguma troca de palavras? A falta dela é tão
mais presente que o silêncio da arrumação dos armários. Éramos a solidão no estado plural, a alegria chegou quando as palavras surgiram. João ganhou ela como esposa e eu não
notei o som do riso de Maria, ela foi embora.
IV
Ontem,
eu comprei querosene, enchi duas latas grandes desse líquido. Em frente ao
piano, pensei nessas questões que nunca tinha duvidado: o meu sucesso solitário
de pianista, Maria, João e a minha arrogância musical... Esse desastre era um
tanto mais devastador que o tsunami. A extensão do meu corpo estava, diante de
mim, intacta e bela. Eu, um velho com saudades.
Com
certa dificuldade, fui despejando o líquido nas cordas do piano. Devagarinho, aquele instrumento se desmanchava, desafinava e perdia o brilho. As teclas
também iam ficando impossível de tocá-las. Estava cometendo o suicídio que
jamais teria coragem de fazer, despejava mais querosene. O piano também morria
devagar como eu.
Sempre
gostei de música. Mas a música parou quando a Maria levou o seu silêncio dessa
casa. O piano derreteu inteiro na minha frente, não chorei, não ri, não fiz
nada. Só sentei no sofá e fiquei lá.
Assistindo.
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