domingo, 12 de agosto de 2012

O Silêncio do pianista



“Os médicos estão fazendo a autópsia
Dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
E um estômago cheio de poesia...
[...]
Única fortuna, os seus dentes de ouro
Não servirão de lastro financeiro
E cobertos de terra perderão o brilho
Enquanto as amadas dançarão um samba
Bravo, violento, sobre a tumba deles.
[Necrológio dos desiludidos do amor, Carlos Drummond de Andrade]

I

Eu me perdi aos vinte e dois anos. Minha melhor amiga tinha ido embora para China – nunca quis saber onde ela ficou – e, desde então, eu fui me afastando aos poucos das pessoas; no primeiro momento foi a minha família no Brasil; no segundo, o meu trabalho. As pessoas que tinham alguma consideração por mim e estavam por perto, achavam que eu tinha algum talento para música e passei a acreditar nisso.  Ao notar a minha solidão, eu também fui perdendo a vontade e a competência de criar melodias novas.
Na realidade, eu era um sortudo. Meus amigos gostavam muito de mim e a minha música era prazerosa, porque era acima de tudo uma brincadeira. Sonhava ser um Chopin, algo comparável aos grandes compositores alemães e, quanto mais, eu acreditava em mim, criava menos ou fazia peças musicais detestáveis. Então... Ficava contaminado pela preguiça, a barba ficara enorme, o cabelo também. Já não criava.
Naquela tarde, eu tinha voltado do supermercado e comprado uma garrafa de uísque. Acho que estava deprimido. Bela combinação! Triste e sozinho (já poderia ser considerado um personagem ridículo da literatura romântica). Um pianista de vinte e dois anos sem criatividade, sem amigos, sem amor, realmente muito pálido, contaminado pela tristeza e sozinho. Precisava tomar um banho.
O piano olhava-me elegantemente. A arrogância desse objeto cobria a sala imensa de olhares impiedosos e postura indiferente. Será que o poeta morreu por causa da arrogância de seus versos? Eu estou perdido, finalmente conclui desolado.

II

Eu queria falar de arrogância. Dizem que o instrumento é a extensão do corpo de um músico; se o piano é tão soberbo e eu sou tão elegante; a música nos fizera arrogante. O meu talento e a beleza eterna das melodias fizeram com que eu tivesse esquecido as angústias humanas, parecendo que eu era mais do que os homens normais... (e eu era!). Quando eu estava no palco, eu era como um semideus e Zeus era o meu piano, éramos indestrutíveis. Possivelmente, essa sensação estava consumindo com o pouco da minha humanidade e fazendo com que eu acreditasse na impossibilidade de viver outra vez infeliz.
A Maria casou com meu melhor amigo, um moço realmente distinto chamado João, abandonou as nossas confidências noturnas. Ao sentir no peito o peso da solidão, acordou a impressão da infelicidade e fiquei com vontade de chorar, pois agora era eu e o meu piano.

Na realidade, era eu mesmo. O piano era a extensão da minha tristeza. Tinha um tempo que eu achava que só bastava a mim. Mesmo quando aconteceram os grandes desastres no Japão e consegui sobreviver sem piano ou partituras novas. Sobrando apenas o meu corpo, cheguei à conclusão que eu era mais um sobrevivente. A solidão tinha salvado a minha vida. Depois de dez anos ou vinte, (não recordo direito), o reencontro com esse piano elegante, em frente dos meus olhos hoje, fora algo quase místico, me senti tão inteiro e pleno. E quase esqueci a necessidade de estar ao lado de alguém. Essa sensação divina de criar música iludia a minha solidão.
Deslumbrado com essa realização artística, não percebi a presença de Maria. Arrumando silenciosamente as minhas meias, ouvindo as melodias interrompidas, acordando os meus sonos conturbados e, delicadamente, preparando o meu café e o meu pão pela manhã. Esqueci que ela existia, não sei nem quando o João e a Maria começaram a se envolver.

III
Era uma noite qualquer de aplausos e sucesso. Foi quando percebi. Ela e ele, com as mãos dadas, namorando e gargalhando. Aproximei deles e pedi um pouco de água. Fiquei um tanto surpreso, precisava de algo para molhar o meu coração, o uísque afogaria as minhas mágoas depois, mas não naquele momento. Queria demonstrar tranquilidade, queria parecer o mesmo de antes. Soberbo, alegre e conversador.
Mas, nem cumprimentar, eu consegui e fiquei olhando, não me recordo por quanto tempo. Ela que se aproximou de mim exageradamente feliz, fiquei enojado com tanta alegria:

- música linda! – para o João – né, meu amor? Pedro não toca canções lindas?
- também, ele não larga o piano, - dando tapinhas nas costas do pianista, - que até esquece a solidão
Balancei a cabeça afirmando.
- Vocês estão juntos? – disse fingindo tranquilidade
- ele me pediu em casamento na sua frente, não lembra? – Maria sorria, - você estava tentando achar a tal melodia perfeita e eu arrumava as suas meias. Foi quando o João entrou, pediu licença, falou que me amava e queria ficar comigo para sempre. Não lembra, Pedro? O João até pediu permissão pra você
- e você disse que podia – João beijou a boca de Maria. Eu sorri.
Foi então que fiz para mim as perguntas de agora. Maria casou em um domingo, depois foi embora para China com João. Quanto tempo eu fiquei distraído sem perceber a presença deles? Não tinha recordado o evento do pedido de casamento, se eu tivesse percebido será que eu reagiria de outro modo? Ah! O piano!... Antes você me bastava, agora não tem ninguém arrumando as minhas meias em silêncio. Maria silenciava a minha ausência, eu cobria o ambiente com música. Em algum momento, vivendo isso, tivemos alguma troca de palavras? A falta dela é tão mais presente que o silêncio da arrumação dos armários. Éramos a solidão no estado plural, a alegria chegou quando as palavras surgiram. João ganhou ela como esposa e eu não notei o som do riso de Maria, ela foi embora.

IV

Ontem, eu comprei querosene, enchi duas latas grandes desse líquido. Em frente ao piano, pensei nessas questões que nunca tinha duvidado: o meu sucesso solitário de pianista, Maria, João e a minha arrogância musical... Esse desastre era um tanto mais devastador que o tsunami. A extensão do meu corpo estava, diante de mim, intacta e bela. Eu, um velho com saudades.
Com certa dificuldade, fui despejando o líquido nas cordas do piano. Devagarinho, aquele instrumento se desmanchava, desafinava e perdia o brilho. As teclas também iam ficando impossível de tocá-las. Estava cometendo o suicídio que jamais teria coragem de fazer, despejava mais querosene. O piano também morria devagar como eu.
Sempre gostei de música. Mas a música parou quando a Maria levou o seu silêncio dessa casa. O piano derreteu inteiro na minha frente, não chorei, não ri, não fiz nada. Só sentei  no sofá e fiquei lá. Assistindo. 

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